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Edição critica políticas de "racialização"
Organizador do livro "Divisões Perigosas", que está sendo lançado, critica pressupostos raciais em políticas públicas no Brasil
"É como se tivéssemos voltado no tempo, com práticas que são temas de análise de historiadores da ciência", diz Ventura Santos
MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL
"Iniciativas como o "tribunal
das raças" na Universidade de
Brasília (UnB) têm um fortíssimo apelo autoritário." Essa é a
opinião do antropólogo Ricardo Ventura Santos, um dos organizadores do livro "Divisões
Perigosas - Políticas Raciais no
Brasil Contemporâneo" (Civilização Brasileira, 364 págs., R$
30), que está sendo lançado.
Também organizado por Peter Fry, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio e Simone Monteiro, o livro sintetiza a discussão de um grupo de intelectuais, acadêmicos e militantes
que têm se posicionado fortemente contra o projeto do Estatuto da Igualdade Racial,
atualmente em tramitação no
Congresso.
Pesquisador titular da Escola
Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz, e professor adjunto do departamento de antropologia do Museu
Nacional, da UFRJ, Santos critica a "racialização" das políticas públicas, dizendo que o enfrentamento das desigualdades
deveria ser tratado no plano socioeconômico e educacional, e
não no racial.
FOLHA - Qual é o objetivo dos organizadores com o livro "Divisões Perigosas"?
RICARDO VENTURA SANTOS - O livro
apresenta um posicionamento,
democrático e anti-racista, de
intelectuais e representantes
de movimentos sociais, incluindo ativistas do movimento negro, que defendem a universalização dos direitos sociais. Não há dúvida de que há
racismo e discriminação no
Brasil. O grande debate é se a
racialização das políticas públicas é a melhor maneira de superar as enormes desigualdades presentes no país.
FOLHA - O sr. acredita que o Estatuto da Igualdade Racial vai ser aprovado no Congresso?
SANTOS - Não tenho ilusões de
que o projeto de cotas [projeto
de lei 73/1999] e o Estatuto da
Igualdade Racial possam vir a
ser votados e aprovados a qualquer momento no Congresso.
Há toda uma estrutura no governo voltada para isso. A ampliação que está acontecendo
do debate, seja através das cartas públicas ou agora pelo livro,
parece estar tendo o efeito de
colocar a questão para a sociedade como um todo, e não somente nos circuitos mais restritos de Brasília.
FOLHA - Os organizadores do livro
estão sendo criticados por setores
dos movimentos negros?
SANTOS - Logo depois da divulgação da carta pública, em
meados de 2006, quando se
criticou o projeto de lei de cotas e o Estatuto da Igualdade
Racial, passaram a circular na
internet frases de efeito como
"contra as cotas, só racistas". É
no mínimo uma estratégia de
cerceamento do debate, com
uma não pequena dose de violência simbólica. Ironicamente, "Divisões Perigosas" é um
conjunto de reflexões que
questiona precisamente vários
dos pressupostos raciais das
atuais políticas públicas no
Brasil. O livro é, antes de tudo,
anti-racialista (ou seja, questiona as bases do conceito de
raça). Na visão dos autores, o
enfrentamento das desigualdades passa muito mais pelo plano socioeconômico e educacional do que racial "per se".
FOLHA - À luz da experiência dos
últimos anos em instituições como a
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), pode-se dizer que o sistema de cotas é vitorioso? O caso recente dos irmãos gêmeos univitelinos Alex e Alan Teixeira da Cunha,
que foram "classificados" um como
negro e o outro como branco na Universidade de Brasília (UnB), coloca
em xeque essa política?
SANTOS - As informações desde
que o sistema foi adotado não
estão disponíveis. E acho que
precisaria haver uma avaliação
externa a essas instituições. O
chocante caso dos gêmeos na
UnB não me surpreendeu nem
um pouco. Continuo a achar
inacreditável que a universidade adote um procedimento como este. É como se tivéssemos
voltado no tempo, com práticas
que são temas de análise de historiadores da ciência. Recentemente participei de um seminário no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT),
nos EUA. Depois de minha
apresentação, duas ou três pessoas levantaram a mão e diretamente perguntaram o que estava acontecendo na UnB. É algo
que surpreende a muitos.
Ironicamente, lembro-me
dos debates sobre a definição
de "índio" nos anos 70. Na ocasião, no contexto da ditadura,
houve tentativas por parte de
agências governamentais, e da
Funai em particular, no sentido
de estabelecer critérios "científicos" para definir quem seria
índio. Houve uma reação generalizada dos movimentos indígenas, de antropólogos e de geneticistas. A ironia é que, num
contexto de consolidação da
democracia, estamos assistindo à implementação de iniciativas como o "tribunal das raças"
na UnB que têm um fortíssimo
apelo autoritário.
FOLHA - Há riscos ao se "racializar"
as políticas de saúde pública, por
exemplo?
SANTOS - A questão do determinismo biológico é um dos
mais preocupantes riscos das
associações apressadas entre
raça e saúde. Na área da saúde,
persiste como um desafio a implementação dos conceitos de
cor e raça na abordagem das
doenças geneticamente determinadas.
FOLHA - Quais as possíveis conseqüências negativas com adoção do
sistema de cotas e no Estatuto da
Igualdade Racial?
SANTOS - O debate sobre as cotas constitui somente a ponta
do iceberg num processo muito
mais amplo e profundo de racialização das políticas públicas
no Brasil. A preocupação é amplificada com o que está no Estatuto, porque trabalha com a
instituição da idéia da raça no
plano da saúde, do mercado de
trabalho, no plano das identidades. A proposta de "Divisões
Perigosas" é que os leitores
mergulhem no debate e vejam
o tamanho do iceberg. Não é
pequeno, posso garantir, com
implicações profundas para a
vida de todos nós.
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