São Paulo, sábado, 16 de junho de 2007

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Edição critica políticas de "racialização"

Organizador do livro "Divisões Perigosas", que está sendo lançado, critica pressupostos raciais em políticas públicas no Brasil

"É como se tivéssemos voltado no tempo, com práticas que são temas de análise de historiadores da ciência", diz Ventura Santos

MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL

"Iniciativas como o "tribunal das raças" na Universidade de Brasília (UnB) têm um fortíssimo apelo autoritário." Essa é a opinião do antropólogo Ricardo Ventura Santos, um dos organizadores do livro "Divisões Perigosas - Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo" (Civilização Brasileira, 364 págs., R$ 30), que está sendo lançado. Também organizado por Peter Fry, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio e Simone Monteiro, o livro sintetiza a discussão de um grupo de intelectuais, acadêmicos e militantes que têm se posicionado fortemente contra o projeto do Estatuto da Igualdade Racial, atualmente em tramitação no Congresso.
Pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, e professor adjunto do departamento de antropologia do Museu Nacional, da UFRJ, Santos critica a "racialização" das políticas públicas, dizendo que o enfrentamento das desigualdades deveria ser tratado no plano socioeconômico e educacional, e não no racial.  

FOLHA - Qual é o objetivo dos organizadores com o livro "Divisões Perigosas"?
RICARDO VENTURA SANTOS
- O livro apresenta um posicionamento, democrático e anti-racista, de intelectuais e representantes de movimentos sociais, incluindo ativistas do movimento negro, que defendem a universalização dos direitos sociais. Não há dúvida de que há racismo e discriminação no Brasil. O grande debate é se a racialização das políticas públicas é a melhor maneira de superar as enormes desigualdades presentes no país.

FOLHA - O sr. acredita que o Estatuto da Igualdade Racial vai ser aprovado no Congresso?
SANTOS
- Não tenho ilusões de que o projeto de cotas [projeto de lei 73/1999] e o Estatuto da Igualdade Racial possam vir a ser votados e aprovados a qualquer momento no Congresso. Há toda uma estrutura no governo voltada para isso. A ampliação que está acontecendo do debate, seja através das cartas públicas ou agora pelo livro, parece estar tendo o efeito de colocar a questão para a sociedade como um todo, e não somente nos circuitos mais restritos de Brasília.

FOLHA - Os organizadores do livro estão sendo criticados por setores dos movimentos negros?
SANTOS
- Logo depois da divulgação da carta pública, em meados de 2006, quando se criticou o projeto de lei de cotas e o Estatuto da Igualdade Racial, passaram a circular na internet frases de efeito como "contra as cotas, só racistas". É no mínimo uma estratégia de cerceamento do debate, com uma não pequena dose de violência simbólica. Ironicamente, "Divisões Perigosas" é um conjunto de reflexões que questiona precisamente vários dos pressupostos raciais das atuais políticas públicas no Brasil. O livro é, antes de tudo, anti-racialista (ou seja, questiona as bases do conceito de raça). Na visão dos autores, o enfrentamento das desigualdades passa muito mais pelo plano socioeconômico e educacional do que racial "per se".

FOLHA - À luz da experiência dos últimos anos em instituições como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), pode-se dizer que o sistema de cotas é vitorioso? O caso recente dos irmãos gêmeos univitelinos Alex e Alan Teixeira da Cunha, que foram "classificados" um como negro e o outro como branco na Universidade de Brasília (UnB), coloca em xeque essa política?
SANTOS
- As informações desde que o sistema foi adotado não estão disponíveis. E acho que precisaria haver uma avaliação externa a essas instituições. O chocante caso dos gêmeos na UnB não me surpreendeu nem um pouco. Continuo a achar inacreditável que a universidade adote um procedimento como este. É como se tivéssemos voltado no tempo, com práticas que são temas de análise de historiadores da ciência. Recentemente participei de um seminário no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA. Depois de minha apresentação, duas ou três pessoas levantaram a mão e diretamente perguntaram o que estava acontecendo na UnB. É algo que surpreende a muitos.
Ironicamente, lembro-me dos debates sobre a definição de "índio" nos anos 70. Na ocasião, no contexto da ditadura, houve tentativas por parte de agências governamentais, e da Funai em particular, no sentido de estabelecer critérios "científicos" para definir quem seria índio. Houve uma reação generalizada dos movimentos indígenas, de antropólogos e de geneticistas. A ironia é que, num contexto de consolidação da democracia, estamos assistindo à implementação de iniciativas como o "tribunal das raças" na UnB que têm um fortíssimo apelo autoritário.

FOLHA - Há riscos ao se "racializar" as políticas de saúde pública, por exemplo?
SANTOS
- A questão do determinismo biológico é um dos mais preocupantes riscos das associações apressadas entre raça e saúde. Na área da saúde, persiste como um desafio a implementação dos conceitos de cor e raça na abordagem das doenças geneticamente determinadas.

FOLHA - Quais as possíveis conseqüências negativas com adoção do sistema de cotas e no Estatuto da Igualdade Racial?
SANTOS
- O debate sobre as cotas constitui somente a ponta do iceberg num processo muito mais amplo e profundo de racialização das políticas públicas no Brasil. A preocupação é amplificada com o que está no Estatuto, porque trabalha com a instituição da idéia da raça no plano da saúde, do mercado de trabalho, no plano das identidades. A proposta de "Divisões Perigosas" é que os leitores mergulhem no debate e vejam o tamanho do iceberg. Não é pequeno, posso garantir, com implicações profundas para a vida de todos nós.


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