São Paulo, sexta-feira, 16 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

José Agripino de Paula

Está sendo relançado o romance de José Agripino de Paula, de cuja primeira edição, a pedido de Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, tive o prazer de fazer a apresentação. Li os originais e fiquei relativamente estarrecido: dos muitos romances inéditos que chegavam à editora naquele tempo, "Lugar Público" era diferente, novo sem ser revolucionário. E revelava um autor por dentro dos macetes mais avançados da época, mas sem o pedantismo que em geral acompanha as obras que pretendem abrir caminhos para o fatigado gênero literário e, de lambujem, criar uma nova era na literatura universal.
Creio que avaliei o original sem me preocupar em avaliar o autor, o que nem sempre é possível. Para quem não é crítico profissional, mas simples leitor e eventual resenhador de livros, a curiosidade pela pessoa que apresenta seu primeiro livro a uma editora é muitas vezes o ponto de partida para a leitura de um ou de outro original. Ênio me entregou o texto com uma única recomendação: merece ou não publicação?
Evidente que merecia. Só depois do lançamento do livro vim a conhecer o autor, já estranho naquele tempo, mas não tanto. Hoje, sabemos que José Agripino de Paula radicalizou na sua opção de viver como vive, deve ter motivos para isso. Mas o que interessa é o seu livro, que permanece o mesmo, intato, influenciando gente que nem era nascida quando a obra foi escrita e publicada. Transcrevo o prefácio da apresentação que fiz para "Lugar Público":
"A primeira constatação, após a leitura deste romance, é positiva: ganha a literatura brasileira um novo criador. Não se trata de um simples escritor, que escritores há muitos, inclusive alguns que se dedicam ao romance ou ao conto. Mas "Lugar Público" revela um criador, um artista que, através de moderno e bem informado artesanato literário, consegue construir o seu universo peculiar e universal. Para ser exato, seu universo particularmente universal.
É ao que me informaram um estreante. Aqui e ali, neste romance, podemos encontrar alguma indecisão técnica, alguma imprecisão de linguagem. Mas indecisões ou imprecisões desaparecem no alentado texto deste romance de estréia. O que fica é o poderoso fabular, o caótico mundo de um universo caótico, a obstinação do escritor em criar, criar sempre, a todo custo. Um saldo mais do que positivo.
Seria lícito apreciarmos, como abordagem interpretativa, as influências evidentes ou suspeitadas deste novo criador. Desprezando os lugares-comuns da narrativa, abolindo o relato linear, misturando planos objetivos e subjetivos, sente-se, logo às primeiras páginas, a presença de um escritor incomum. Sua frase, monotonamente curta, pode ser acusada de "fácil". Houve, com efeito, uma época em que escritores comodistas abusavam do ponto-palavra-ponto. Da frase-período. A facilidade do recurso revelava tão somente a pobreza da linguagem. Não é este o caso do autor de "Lugar Público". A economia sintática, a construção sincopada, em blocos, lembram, evidentemente, o "roman du regard". Ignoro se o autor conhece ou não os romances e ensaios de Alain Robbe-Grillet. Mas gostaria de citar um trecho do romancista francês altamente adequado à linguagem e à técnica de "Lugar Público".
"Não é raro, com efeito, em romances modernos, que se encontre uma descrição falando de nada; ela não dá inicialmente uma visão de conjunto, parecendo nascer de um mínimo fragmento sem importância a partir do qual inventa linhas, planos, uma arquitetura; e tem-se ainda mais a impressão de que os inventa porque de repente, ela se contradiz, se repete, retoma, bifurca etc. Mas as linhas do desenho se acumulam, se sobrecarregam, se negam, se deslocam, de modo que a imagem é posta em dúvida à medida que se constrói". (A. Robbe-Grillet: "Por um Novo Romance", Les Éditions de Minuit, p. 127).
Desprezando a parte técnica, isolando aquilo que poderíamos chamar de conteúdo, ainda aqui estamos diante do que de mais moderno existe em matéria de ficção. Temos, no Brasil, um grande romancista de que se poderia suspeitar uma influência no autor: Campos de Carvalho. Mas prefiro ir mais longe, buscando em Henry Miller, no Sartre de "Sursis", os aparentes formadores da visão espessa e irritada deste novo romancista.
Sendo eu, também, autor de romances, divirto-me, às vezes, em perceber o esforço de alguns críticos buscando situar minhas origens e influências. É possível que o autor de "Lugar Público" também se divirta com esta tentativa de minha parte, tentativa que não é crítica, mas simples e ingenuamente aproximativa. Ou informativa.
Pois deixando de lado Robbe-Grillet, Miller ou Sartre, é preciso reconhecer o óbvio e aqui escrevo o nome do autor: é preciso reconhecer José Agripino de Paula. Ignoro se se trata de um jovem embora tudo pareça jovem em seu romance, em sua visão de mundo. E acredito que todos os que escrevemos e lemos, neste país, tenhamos orgulho em poder saudar um criador que vem para a arena tão bem dotado, apresentando não uma hipotética promessa, mas uma realidade cujos contornos, em breve, a crítica e o público deverão precisar e consagrar".


Texto Anterior: DVD/lançamentos: Clássico das "space operas" volta em DVD
Próximo Texto: Panorâmica - Arte: Polícia britânica oculta escultura de nudez
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.