São Paulo, quarta-feira, 16 de julho de 2008

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MARCELO COELHO

Luzes, câmera, ação


Não é porque muitos pobres mofam anos na cadeia que eu desejo a extensão da injustiça

PIROTECNIA, ESPETACULARIZAÇÃO, linchamento: fala-se muito disso a propósito da prisão de Daniel Dantas, Celso Pitta e Naji Nahas, diante das câmeras da Globo. Não acho que tudo foi tão espetacularizado assim. Lembro-me do caso de um peixe grande, há tempos, que ao ser preso foi posto aos berros dentro de um camburão. Dantas, Pitta e Nahas seguiram em carro comum, é verdade que desnecessariamente algemados. Mas não houve truculência.
Pode-se considerar que foi equivocada a prisão dos envolvidos. Não se trata, em todo caso, de nenhum arbítrio da Polícia Federal: foi feita em obediência às ordens de um juiz.
Há, naturalmente, o fato de que tudo foi acompanhado pelas câmeras.
Será, em tese, um mal absoluto que isso aconteça? É possível pensar o inverso. As chances de violência policial são muito maiores quando nada é exposto ao público.
Se uma emissora de televisão acompanhasse sempre as ações da PM fluminense, a legalidade e o respeito aos direitos humanos estariam bem mais protegidos.
Sem dúvida, os acusados na Operação Satiagraha sofrem danos sérios na imagem pessoal. Sobre Celso Pitta e Naji Nahas nada preciso dizer, mas a respeito de Daniel Dantas não me esqueço da capa de uma revista semanal, manipulando sua fotografia de modo a apresentá-lo com orelhas gigantescas. Difícil saber o que restava a preservar depois de investidas desse tipo; televisioná-lo ao ser preso, com meio mundo tomando as suas dores, não me parece muito pior.
Em matéria de espetacularização, ou seja lá que nome tenha, também o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, tem parte no cartório.
Antes de julgar o caso, apareceu na televisão manifestando repúdio aos métodos da Polícia Federal. Não deveria ser mais discreto?
Li também declarações de um experiente jurista, que chegou a questionar a existência de democracia no país. Esta só se realizará de fato quando for assegurado o pleno direito de defesa aos cidadãos, afirmou, juntando-se às vozes de protesto contra a segunda prisão de Daniel Dantas.
Bem, se alguém conta com pleno direito de defesa no Brasil, acho que é Daniel Dantas. Não acho errado, aliás. Não é porque muitos pobres mofam anos na cadeia, sem garantias mínimas de defesa, que eu desejo a extensão dessa injustiça para todos os cidadãos.
Por falar em direito de defesa, está em cartaz em São Paulo "O Advogado do Terror", um documentário fascinante sobre Jacques Vergès.
Charuto na boca, escritório luxuoso, olhos que vão do cinismo às lágrimas em fração de segundo, Vergès é entrevistado longamente a respeito de sua carreira polêmica nos tribunais do mundo.
Ele defendeu o nazista Klaus Barbie, o genocida Slobodan Milosevic e o terrorista Carlos, o "Chacal". "O senhor defenderia Hitler?", perguntam-lhe. "Eu defenderia até Bush!", diz o bizarro velhote, "desde que ele se confessasse culpado".
Vergès começou sua vida política engajando-se na resistência contra o nazismo. Daí passou, dentro de uma mesma perspectiva humanitária e de esquerda, a horrorizar-se com os massacres e torturas feitos pelos franceses na Argélia.
Incrível como parecia relativamente "normal", nos anos 50, que a resistência ao colonialismo europeu recorresse a atentados terroristas odiosos. Uma bomba explode numa lanchonete freqüentada por adolescentes "opressores"; Jacques Vergès defende a bela terrorista argelina Djamila Bouhared, autora do atentado, por quem se apaixona.
As relações de nazistas históricos com movimentos árabes e com extremistas de esquerda vai sendo exposta no filme; Jacques Vergès termina em ótimas relações com o que há de pior nas duas pontas do espectro político.
O que move esse advogado? Certamente, não o ideal abstrato do direito de defesa. Dinheiro parece ajudar bastante. Mas, nesse filho de uma vietnamita com pai francês, a psicanálise sem dúvida tem seus julgamentos a proferir.
Vergès lamenta não ter sido mutilado pelos alemães quando se engajou na Resistência; nesse caso, ficaria mais tranqüilo no papel de herói.
Um de seus maiores medos era ser castrado por uma mina terrestre.
Parece buscar, no resto da vida, pessoas que fossem capazes de fazer isso com ele. Ou com os outros. Fez o possível para ser odiado pela opinião pública; há gente assim. Pelo menos não reclama da imagem que tem.

coelhofsp@uol.com.br


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