São Paulo, sábado, 16 de julho de 2011

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CRÍTICA ROMANCE

Em "Fama", Kehlmann cria jogo de máscaras sem magia

NOS MOMENTOS DE MAIOR FRAQUEZA, ELE PARECE UM NABOKOV MENOS POÉTICO, UM BORGES MENOS ABRANGENTE

MARCELO BACKES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Depois do best-seller "A Medida do Mundo", Daniel Kehlmann chega mais uma vez ao Brasil.
"Fama: Um Romance em Nove Histórias" é um palácio de espelhos, um jogo com identidades estranhas na era do mundo mediado.
Uma mulher que tem medo de aparecer nas histórias do marido, um blogueiro cujo maior desejo é se tornar personagem de romance, uma doente que decide viajar à Suíça em busca de uma organização que oferece assistência ao suicídio, uma escritora que se perde, incomunicável, nos confins da Ásia.
As nove histórias compõem um painel romanesco de personagens que querem viver mais de uma vida paralelamente com a ajuda do celular, da web, dos jogos de computador que prometem a volta ao arquétipo mítico.
Alguns deles são escritores e se enrolam nas histórias que eles mesmos criam, devorados pelas próprias teias.
A pergunta que resta ao final é: quem é o último narrador, o ser mais elevado que vigia suas criaturas, apascenta suas ovelhas e sempre se comporta como um "Deus de segunda categoria"?
É a questão teológica da escrita num mundo chamado literatura, no qual a fronteira entre verdade e mentira não existe mais.

PRESTIDIGITADOR
Kehlmann é inteligente, um prestidigitador dos mais hábeis. Seu humor tem alta voltagem, sua linguagem é apurada, seus diálogos são bem construídos.
Nos melhores momentos, o reflexo abre portas para a reflexão, abordando temas como o acaso e o destino, o amor e a morte, a guerra que impera lá fora.
Tudo começa e tudo termina com um toque de celular.
No princípio trata-se de um engano, no final o telefone não é atendido.
Quando ouvido, é sempre um índice de confusão. Outro autor alemão, bem antes, já vira no celular a cifra da contemporaneidade: Ingo Schulze em "Celular".
Nos momentos de maior fraqueza, ele parece um Nabokov menos poético, um Borges menos abrangente, um Pynchon menos virtuoso.
Em "short cuts", "Fama" mostra pequenos incidentes causando grandes consequências, borboletas que batem asas na Alemanha e fazem chover no Brasil.
As "Nove Estórias" de Salinger são invocadas no subtítulo, Kehlmann quer fintar como Friedrich Dürrenmatt, mas às vezes seu jogo de máscaras é tão elaborado que acaba sucumbindo à falta de mistério e de magia.
Como era mesmo a traição num mundo sem aparelhos?
Falta o visceralismo de um Sherwood Anderson, que, em "Winesburg, Ohio" (de 1919!), já fazia um romance de narrativas esparsas sobre personagens telúricos.
Em Kehlmann, a inteligência da prestidigitação é grande demais e o arquiteto primoroso constrói um prédio só com estrutura, com moradores de plástico dentro.

MARCELO BACKES é tradutor e escritor, autor de "Estilhaços" e "Três Traidores e uns Outros", entre outros livros.

FAMA - UM ROMANCE EM NOVE HISTÓRIAS
AUTOR Daniel Kehlmann
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Sonali Bertuol
QUANTO R$ 39,50 (160 págs.)
AVALIAÇÃO regular


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