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CARLOS HEITOR CONY
A cigarra de Tchecov e as adúlteras de Flaubert e Tolstói
Personagem mais recorrente da literatura universal,
a adúltera, ao contrário dos poetas, que não se fazem, mas nascem poetas, é o oposto dos oradores, que não nascem oradores,
mas como Demóstenes, que era
gago, fazem-se colocando pedras
na boca para dar mobilidade à
língua. Nenhuma adúltera precisa colocar nada em seu corpo ou
em sua alma para se tornar adúltera. Ela já nasce assim, como Capitu, que em criança já tinha a semente de ambiguidade que, como
fruto maduro, transforma Bentinho em dom Casmurro.
Encontrei uma edição dos contos de Tchecov que procurava havia anos. Lera "A Cigarra" na juventude, perdera o livro que continha essa obra do autor de "Tio
Vânia". Mas nunca me esqueci
dela, considerando-a o conto
mais perfeito da literatura de todos os tempos. Se a afirmação parece polêmica, tanto pior.
Trata-se de uma adúltera que
não se castiga com a morte, como
Ema Bovary, de Flaubert, ou como Anna Karenina, de Tolstói.
Ou como Luísa, de "O Primo Basílio", obras escritas na segunda
metade do século 19 e que têm
pontos anedóticos comuns: a insatisfação da mulher diante de
maridos prosaicos, honestos e ingênuos como Carlos Bovary, ou
cruéis como o nobre Karenin, ou
desligados como Jorge, o marido
de Luísa.
A cigarra é Olga Invánovna,
mulher de Ossip Stepánitch Dimov, uma deslumbrada que vivia
cercada de artistas, atores, poetas,
pintores e músicos. Somente com
a morte do marido, um médico
que vivia obscuramente para o
seu ofício, compreendeu que havia perdido o homem mais importante de sua vida. Homem que
no fundo ela desprezava, achando-o incolor, sem brilho. Tratava-o com ternura, mas no fundo o
desprezava, atraída como as cigarras pelo calor fugidio das tardes de verão.
Tanto Flaubert em 1857, com
"Madame Bovary", como Tolstói
em 1875, com "Anna Karenina", e
como Eça em 1878, com "O Primo
Basílio", puniram suas adúlteras
com o fracasso sentimental e com
o remorso da traição. Tchecov,
um pouco depois, já na virada do
século 19 para o 20, não chega a
punir Olga Ivánovna. Ou melhor,
dá-lhe castigo pior que a morte.
Fascinada pelo brilho idiota dos
intelectuais e dos artistas, ela se
encanta com a frivolidade de
uma vida mundana, dos salões
onde se discutem quadros, poemas e músicas e entrega-se a diversos amantes, que considera geniais, sem perceber a vulgaridade,
a dimensão medíocre deles.
Enquanto isso, o marido continua tratando de seus doentes,
contamina-se com um deles, ao
sugar por um canudo a infecção
na garganta de um rapaz, entra
em coma, tem um amigo também
médico que lhe dá assistência, tomando conta dele e da casa. Enquanto isso, Olga quebra a cara
com mais um amante que ela
considerava o maior artista do século. Volta para casa, justamente
no momento em que Dimov está
morrendo. Sacode-lhe os ombros,
chamando-o com desespero: "Dimov! Dimov!".
Acredita que ele ainda vive.
Mas ouve o amigo do marido, na
sala ao lado, dizer para uma criada: "Não faça perguntas tolas! Vá
logo procurar o sacristão e peça o
endereço das mulheres que o chorarão, lavarão o corpo e o arrumarão no caixão e farão tudo o
mais que for necessário".
Esse é o final do conto.
Atordoada de dívidas e remorsos, Ema Bovary se envenena com
os remédios do laboratório de seu
marido, médico de província. Anna Karenina se atira nas rodas de
um trem que sai da estação. Luísa
morre também, sem coragem de
enfrentar a chantagem de sua
criada, a extraordinária Juliana
Couceiro Tavira, um dos personagens mais bem delineados por
qualquer romancista do século 19.
Olga Ivánovna é muito babaca
para merecer a redenção da morte. Ela apenas descobre, tardiamente, que o melhor -o maior-
homem de sua vida era aquele
médico obscuro que vivia para
curar seus doentes, o marido socialmente apagado que se prestava a todos os papéis domésticos
como personagem secundário, recebendo cordialmente os intelectuais e artistas que a mulher admirava.
Pouco antes de morrer, Dimov
arranja um fim de semana sem
trabalho, compra caviar, presunto, pão e vinho e vai para sua modesta casa de campo, onde acreditava que a mulher o esperasse.
Encontra a datcha cheia de gente, Olga e seus amigos irão a um
baile, ela precisa de um vestido
que deixara na casa da cidade,
pede que o marido volte para buscar a roupa e algumas jóias, Dimov diz que sim, iria no dia seguinte, interrompendo o fim de
semana sonhado. Estupefata, Olga o recrimina: "Amanhã? Mas
quero, o baile é hoje à noite. Volte
imediatamente, não posso perder
esta festa, não posso decepcionar
meus amigos".
Dimov deixa o embrulho com
caviar, presunto, pão e vinho, vai
buscar o que a mulher lhe pede.
Enfrenta frio e neve. Enquanto isso, Olga e os amigos comem o caviar, o presunto, o pão, bebem o
vinho comprado pelo marido.
Ela não faz isso por maldade.
Acha que Dimov, sendo o que é,
terá muita honra em buscar o
vestido. Elogia sinceramente o
marido, "Ele é muito bom e me
ama!". E, quando descobre o homem que é seu marido, não tem
tempo nem direito de chorá-lo.
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