São Paulo, sexta-feira, 16 de agosto de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

A cigarra de Tchecov e as adúlteras de Flaubert e Tolstói

Personagem mais recorrente da literatura universal, a adúltera, ao contrário dos poetas, que não se fazem, mas nascem poetas, é o oposto dos oradores, que não nascem oradores, mas como Demóstenes, que era gago, fazem-se colocando pedras na boca para dar mobilidade à língua. Nenhuma adúltera precisa colocar nada em seu corpo ou em sua alma para se tornar adúltera. Ela já nasce assim, como Capitu, que em criança já tinha a semente de ambiguidade que, como fruto maduro, transforma Bentinho em dom Casmurro.
Encontrei uma edição dos contos de Tchecov que procurava havia anos. Lera "A Cigarra" na juventude, perdera o livro que continha essa obra do autor de "Tio Vânia". Mas nunca me esqueci dela, considerando-a o conto mais perfeito da literatura de todos os tempos. Se a afirmação parece polêmica, tanto pior.
Trata-se de uma adúltera que não se castiga com a morte, como Ema Bovary, de Flaubert, ou como Anna Karenina, de Tolstói. Ou como Luísa, de "O Primo Basílio", obras escritas na segunda metade do século 19 e que têm pontos anedóticos comuns: a insatisfação da mulher diante de maridos prosaicos, honestos e ingênuos como Carlos Bovary, ou cruéis como o nobre Karenin, ou desligados como Jorge, o marido de Luísa.
A cigarra é Olga Invánovna, mulher de Ossip Stepánitch Dimov, uma deslumbrada que vivia cercada de artistas, atores, poetas, pintores e músicos. Somente com a morte do marido, um médico que vivia obscuramente para o seu ofício, compreendeu que havia perdido o homem mais importante de sua vida. Homem que no fundo ela desprezava, achando-o incolor, sem brilho. Tratava-o com ternura, mas no fundo o desprezava, atraída como as cigarras pelo calor fugidio das tardes de verão.
Tanto Flaubert em 1857, com "Madame Bovary", como Tolstói em 1875, com "Anna Karenina", e como Eça em 1878, com "O Primo Basílio", puniram suas adúlteras com o fracasso sentimental e com o remorso da traição. Tchecov, um pouco depois, já na virada do século 19 para o 20, não chega a punir Olga Ivánovna. Ou melhor, dá-lhe castigo pior que a morte.
Fascinada pelo brilho idiota dos intelectuais e dos artistas, ela se encanta com a frivolidade de uma vida mundana, dos salões onde se discutem quadros, poemas e músicas e entrega-se a diversos amantes, que considera geniais, sem perceber a vulgaridade, a dimensão medíocre deles.
Enquanto isso, o marido continua tratando de seus doentes, contamina-se com um deles, ao sugar por um canudo a infecção na garganta de um rapaz, entra em coma, tem um amigo também médico que lhe dá assistência, tomando conta dele e da casa. Enquanto isso, Olga quebra a cara com mais um amante que ela considerava o maior artista do século. Volta para casa, justamente no momento em que Dimov está morrendo. Sacode-lhe os ombros, chamando-o com desespero: "Dimov! Dimov!".
Acredita que ele ainda vive. Mas ouve o amigo do marido, na sala ao lado, dizer para uma criada: "Não faça perguntas tolas! Vá logo procurar o sacristão e peça o endereço das mulheres que o chorarão, lavarão o corpo e o arrumarão no caixão e farão tudo o mais que for necessário".
Esse é o final do conto.
Atordoada de dívidas e remorsos, Ema Bovary se envenena com os remédios do laboratório de seu marido, médico de província. Anna Karenina se atira nas rodas de um trem que sai da estação. Luísa morre também, sem coragem de enfrentar a chantagem de sua criada, a extraordinária Juliana Couceiro Tavira, um dos personagens mais bem delineados por qualquer romancista do século 19.
Olga Ivánovna é muito babaca para merecer a redenção da morte. Ela apenas descobre, tardiamente, que o melhor -o maior- homem de sua vida era aquele médico obscuro que vivia para curar seus doentes, o marido socialmente apagado que se prestava a todos os papéis domésticos como personagem secundário, recebendo cordialmente os intelectuais e artistas que a mulher admirava.
Pouco antes de morrer, Dimov arranja um fim de semana sem trabalho, compra caviar, presunto, pão e vinho e vai para sua modesta casa de campo, onde acreditava que a mulher o esperasse.
Encontra a datcha cheia de gente, Olga e seus amigos irão a um baile, ela precisa de um vestido que deixara na casa da cidade, pede que o marido volte para buscar a roupa e algumas jóias, Dimov diz que sim, iria no dia seguinte, interrompendo o fim de semana sonhado. Estupefata, Olga o recrimina: "Amanhã? Mas quero, o baile é hoje à noite. Volte imediatamente, não posso perder esta festa, não posso decepcionar meus amigos".
Dimov deixa o embrulho com caviar, presunto, pão e vinho, vai buscar o que a mulher lhe pede. Enfrenta frio e neve. Enquanto isso, Olga e os amigos comem o caviar, o presunto, o pão, bebem o vinho comprado pelo marido.
Ela não faz isso por maldade. Acha que Dimov, sendo o que é, terá muita honra em buscar o vestido. Elogia sinceramente o marido, "Ele é muito bom e me ama!". E, quando descobre o homem que é seu marido, não tem tempo nem direito de chorá-lo.


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