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"CABEÇA A PRÊMIO"/"FAMÍLIAS TERRIVELMENTE FELIZES"
Autor retrata matadores e família em duas novas obras
Para Aquino, violência é fator democrático
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Os dois novos livros de Marçal
Aquino chegam recomendados por pareceres muito positivos de dois críticos de renome:
Cristovão Tezza e José Geraldo
Couto (colunista da Folha), que
ao descreverem o autor paulista
citam Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Rubem Fonseca
e Dalton Trevisan.
Não é pouco e, de fato, o estilo
de Aquino, sobretudo nos diálogos, surpreende por sua economia e fluência. Mas há dois outros
aspectos mencionados pelos críticos, que gostaria de destacar: a
violência de suas histórias e sua filiação cinematográfica.
Num momento em que a violência urbana atinge até a edulcorada novela de TV, não podemos
desconsiderar o fato de que o tema fascina cada vez mais nossos
novos (e nem tão novos) autores e
cineastas. A discussão envolve o
decantado princípio da mimese, a
recriação do real. Artistas brasileiros falariam da violência porque
vivem numa sociedade violenta.
Mas até que ponto a violência
estampada na ficção de um autor
como Aquino é produto do cotidiano cruel das nossas cidades?
Peguemos seus dois livros. "Cabeça a Prêmio" é a história de dois
matadores a soldo de um magnata do narcotráfico e de um piloto
que, trabalhando para o mesmo
chefão, procura fugir do esquema
criminoso e o delata. "Famílias
Terrivelmente Felizes" reúne antigos contos publicados e alguns
inéditos, nos quais o núcleo familiar surge corrompido por ciúmes, crimes, vícios e prostituição.
Parece o auge do realismo, ou
do naturalismo, mas, se procurarmos elementos realistas nos relatos, podemos nos decepcionar.
Aquino é lacônico na descrição.
Ademais, características que definem personagens e localidades
não parecem provir deles, mas de
tipos e cenários que já vimos em
algum outro lugar, noutro tempo.
Uma prostituta exibe um cavalo-marinho tatuado no ombro. O
irmão do manda-chuva tem um
ricto labial, enquanto um dos matadores tem voz metálica. A face
esquerda de um criminoso é marcada por cicatrizes, o olho de outro é de vidro. As cidades do interior (Paraná, Piauí) são poeirentas. Em suas ruas, pode passar um
cachorro magro e sarnento. O luminoso tem letras apagadas.
Não faltam detalhes desse tipo
nos livros, mas eles não conferem
um ar maior de realidade às histórias. Acentuam antes seu caráter
mórbido, dissonante, de pesadelo
e desolação. Não se afiguram extraídos de uma observação direta
da vida. Suas fontes são os conflitos rurais do regionalismo transportados para o ambiente urbano
ou semi-urbano, são os romances
policiais norte-americanos, são os
filmes de Quentin Tarantino.
Na epígrafe de "Cabeça a Prêmio", Aquino usa uma frase do cineasta norte-americano Sam Peckinpah: "Quero ser capaz de fazer
westerns como os de Kurosawa".
O diretor japonês inspirou-se nos
bangue-bangues americanos para
produzir filmes como "Os Sete
Samurais". Peckinpah mirou-se
em Kurosawa, para revolucionar
o western nos anos 60. Imitação
da imitação da imitação?
O realismo de Aquino pode ser,
portanto, um hiper-realismo baseado em poucos, mas expressivos cacos metonímicos que repercutem em nós com uma espécie
de reconhecimento às avessas. Ou
um multirrealismo, intermediado
como é por realidades ficcionais
superpostas, que embaralham o
significado imediato.
Nesse universo de intensa simulação, impera a idéia do "homo
homini lupus" (O homem é o lobo do homem), que nem precisa
redundar em morte. No conto
"Recuerdos da Babilônia", dois
amigos do interior do Piauí se encontram em São Paulo. Um está
melhor de vida que o outro. Na
volta ao Nordeste, inverte-se a situação, ocasionando um igual
deslocamento na esfera da dominação. Mas o mais pobre descobre no fim um segredo do agora
remediado, permitindo que volte
a ter ascendência.
A violência, assim, que pode
atuar no campo psicológico, funciona como fator democrático.
Ela anima ricos e pobres, burgueses e criminosos, a uma mesma
dança macabra. Ninguém escapa.
Ou escapa impunemente.
Cabeça a Prêmio
Autor: Marçal Aquino
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 29 (192 págs.)
Famílias Terrivelmente Felizes
Autor: Marçal Aquino
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 32 (232 págs.)
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