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São Paulo, sábado, 16 de agosto de 2003

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"CABEÇA A PRÊMIO"/"FAMÍLIAS TERRIVELMENTE FELIZES"

Autor retrata matadores e família em duas novas obras

Para Aquino, violência é fator democrático

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Os dois novos livros de Marçal Aquino chegam recomendados por pareceres muito positivos de dois críticos de renome: Cristovão Tezza e José Geraldo Couto (colunista da Folha), que ao descreverem o autor paulista citam Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan.
Não é pouco e, de fato, o estilo de Aquino, sobretudo nos diálogos, surpreende por sua economia e fluência. Mas há dois outros aspectos mencionados pelos críticos, que gostaria de destacar: a violência de suas histórias e sua filiação cinematográfica.
Num momento em que a violência urbana atinge até a edulcorada novela de TV, não podemos desconsiderar o fato de que o tema fascina cada vez mais nossos novos (e nem tão novos) autores e cineastas. A discussão envolve o decantado princípio da mimese, a recriação do real. Artistas brasileiros falariam da violência porque vivem numa sociedade violenta.
Mas até que ponto a violência estampada na ficção de um autor como Aquino é produto do cotidiano cruel das nossas cidades? Peguemos seus dois livros. "Cabeça a Prêmio" é a história de dois matadores a soldo de um magnata do narcotráfico e de um piloto que, trabalhando para o mesmo chefão, procura fugir do esquema criminoso e o delata. "Famílias Terrivelmente Felizes" reúne antigos contos publicados e alguns inéditos, nos quais o núcleo familiar surge corrompido por ciúmes, crimes, vícios e prostituição.
Parece o auge do realismo, ou do naturalismo, mas, se procurarmos elementos realistas nos relatos, podemos nos decepcionar. Aquino é lacônico na descrição. Ademais, características que definem personagens e localidades não parecem provir deles, mas de tipos e cenários que já vimos em algum outro lugar, noutro tempo.
Uma prostituta exibe um cavalo-marinho tatuado no ombro. O irmão do manda-chuva tem um ricto labial, enquanto um dos matadores tem voz metálica. A face esquerda de um criminoso é marcada por cicatrizes, o olho de outro é de vidro. As cidades do interior (Paraná, Piauí) são poeirentas. Em suas ruas, pode passar um cachorro magro e sarnento. O luminoso tem letras apagadas.
Não faltam detalhes desse tipo nos livros, mas eles não conferem um ar maior de realidade às histórias. Acentuam antes seu caráter mórbido, dissonante, de pesadelo e desolação. Não se afiguram extraídos de uma observação direta da vida. Suas fontes são os conflitos rurais do regionalismo transportados para o ambiente urbano ou semi-urbano, são os romances policiais norte-americanos, são os filmes de Quentin Tarantino.
Na epígrafe de "Cabeça a Prêmio", Aquino usa uma frase do cineasta norte-americano Sam Peckinpah: "Quero ser capaz de fazer westerns como os de Kurosawa". O diretor japonês inspirou-se nos bangue-bangues americanos para produzir filmes como "Os Sete Samurais". Peckinpah mirou-se em Kurosawa, para revolucionar o western nos anos 60. Imitação da imitação da imitação?
O realismo de Aquino pode ser, portanto, um hiper-realismo baseado em poucos, mas expressivos cacos metonímicos que repercutem em nós com uma espécie de reconhecimento às avessas. Ou um multirrealismo, intermediado como é por realidades ficcionais superpostas, que embaralham o significado imediato.
Nesse universo de intensa simulação, impera a idéia do "homo homini lupus" (O homem é o lobo do homem), que nem precisa redundar em morte. No conto "Recuerdos da Babilônia", dois amigos do interior do Piauí se encontram em São Paulo. Um está melhor de vida que o outro. Na volta ao Nordeste, inverte-se a situação, ocasionando um igual deslocamento na esfera da dominação. Mas o mais pobre descobre no fim um segredo do agora remediado, permitindo que volte a ter ascendência.
A violência, assim, que pode atuar no campo psicológico, funciona como fator democrático. Ela anima ricos e pobres, burgueses e criminosos, a uma mesma dança macabra. Ninguém escapa. Ou escapa impunemente.


Cabeça a Prêmio
  
Autor: Marçal Aquino Editora: Cosac & Naify Quanto: R$ 29 (192 págs.)

Famílias Terrivelmente Felizes
   
Autor: Marçal Aquino Editora: Cosac & Naify Quanto: R$ 32 (232 págs.)


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