|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Comida
Eterno enquanto dure
Fazer pães com fermento natural não é um bicho de sete cabeças, mas exige dedicação
JANAINA FIDALGO
DA REPORTAGEM LOCAL
Toda vez que a chef Mari Hirata deixa o Japão, onde mora,
para dar aulas em outros países, carrega junto o "filho" mais
novo, que, apesar da pouca idade (dez anos), já tem uma extensa linhagem de descendentes espalhada mundo afora. Todos cobiçam a carga genética do
rebento, um fermento natural
elaborado com figo seco que,
nas mãos de Mari, dá origem a
pães de crosta dourada e crocante, perfumado e saboroso.
Para passar despercebido, ele
viaja guardadinho na bolsa,
dormente, em forma de uma
bolinha endurecida com bastante farinha e acondicionado
em um saco plástico (quanto
mais seco estiver, mais difícil
será se reproduzir, crescer).
Grosso modo, ele é obtido a
partir da fermentação da mistura de uma fruta com água e,
depois, do suco resultante com
farinha de trigo.
"Em minhas aulas no Japão,
levo um vidrinho na bolsa com
um pouco de fermento. Alguém
sempre pede", diz a chef e colunista da Revista.
Quem não tem o privilégio
de adotar um bocado do fermento natural de Mari pode se
inspirar no francês Pierre Poilâne -sua famosa padaria até
hoje manda, de avião, pães "au
levain" para vários lugares do
mundo- e se aventurar em casa produzindo sua própria
massa mãe (ou massa madre,
ou levain...).
Ancestral, o processo é menos complicado do que parece,
mas demanda dedicação, paciência e tempo. Enquanto um
pão feito com fermento biológico (aquele industrializado) fica pronto em, no máximo, três
horas, um de fermento natural
leva, no mínimo, dez horas
-sem contar os dias gastos na
produção do fermento em si.
"Quanto mais demorado for
o processo de fermentação,
melhor a qualidade do pão", diz
a chef Clo Dimet, do La Table,
que ministra aulas sobre pão
na Escola Wilma Kövesi.
No recém-inaugurado Floriano, as pizzas do cardápio noturno são feitas com fermento
obtido da uva napolitana taurazi. "Se eu errar a quantidade,
não tem pizza à noite, porque
não tem como apressar. Preciso de mais tempo de fermentação do que para o biológico",
diz o chef Hamilton Mellão Jr.
A favor do fermento natural,
pesam o sabor especial, a casquinha estalante, o cheiro agradável e a durabilidade maior,
de ao menos uma semana.
"O fermento natural confere
as características do pão europeu: miolo cremoso, com alveolação larga e brilhante, casca dura e escura. O pão brasileiro é fino, macio e branco", diz o
chef Roberto Strôngoli, que
produz pães artesanais na Le
Pâtissier Boulangerie.
Nascer e sobreviver
Tal qual um ser vivo, o fermento natural demanda cuidados, e a primeira provação é
nascer. Com dificuldade para
chegar ao fermento natural
perfeito, a chef Roberta Sudbrack percebeu que era preciso
entender este ser complicado.
Em uma tentativa, esqueceu o
vidro com fermento em casa,
por mais de um mês. Encontrado pela faxineira, quase parou
no lixo. "Graças a Deus percebi
antes", diz Roberta, que conseguiu salvar o fermento, batizado de Lorenzo, 3, feito com
uvas passas. Hoje, ele se reveza
na função de dar as boas-vindas
aos clientes do restaurante carioca com dois caçulas: um de
maçã e um de pêssego -um de
abacaxi está a caminho.
"Não é um bicho de sete cabeças como a literatura tenta
mostrar. Depois, você passa a
se entender com o fermento.
Ele é tratado como um membro
da equipe. Nós o alimentamos,
e ele não pode deixar de trabalhar", diz. "O fermento dá origem a um pão cuja textura da
casca é totalmente diferente.
Tem uma crocância maior, que
faz barulho, um croc-croc."
Passado o desafio do nascimento, vem a fase da alimentação do fermento. Enquanto viver, terá de ser cevado com farinha e água filtrada. Se bem cuidado, continuará forte, se reproduzindo e dando origem a
pães gostosos. Quando a intenção não for produzir pães diariamente, o ideal é guardá-lo na
geladeira. Em baixa temperatura, a fermentação desacelera.
No restaurante de Roberta,
em que todos têm férias coletivas no final do ano, a missão de
alimentar os fermentos é dividida. Cada um leva um pedacinho para onde quer que vá.
"A cozinha é um processo de
deslumbramento com os procedimentos, e há pessoas mais
poéticas que se deslumbram
com "detalhes" como o fermento natural", conclui Clo Dimet.
Leia a receita do pão de Roberta Sudbrack
Texto Anterior: Nina Horta: Momento "Ratatouille" Próximo Texto: Passo a passo Índice
|