São Paulo, sábado, 16 de agosto de 2008

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Crítica/João Gilberto

Com tudo do jeito que ele gosta, João relaxa e faz valer a espera

LUIZ FERNANDO VIANNA
EM SÃO PAULO

Além de um robusto cachê, deram a João Gilberto um som perfeito, um ar-condicionado desligado na hora da apresentação e uma platéia silenciosa e muito paciente, cujos nervos não sucumbiram aos 97 minutos de atraso do artista. O resultado da noite de quinta-feira no Auditório Ibirapuera foi um concerto impecável, iniciado sob alguma tensão e concluído em estado de nítido relaxamento, no clima "Joãozinho paz e amor" que marcou quase toda a noite.
Depois de cinco anos sem tocar por aqui, ele possivelmente satisfaria o público interpretando apenas o seu repertório tradicional. Mas houve algumas surpresas. Após pedir desculpas pelo atraso e abrir o show com uma de suas peças de resistência, "Aos Pés da Cruz" (Zé da Zilda/Marino Pinto), João tirou do baú o samba "Treze de Ouro" (Herivelto Martins/Marino Pinto), do repertório dos Anjos do Inferno e de Roberto Silva, ídolos seus.
Mas a surpresa maior viria no longo bis -foram nove músicas além das 20 "oficiais". Na volta ao palco, João cantou "Chove Lá Fora", do "grande Tito Madi". A forte amizade entre os dois terminou em 1961 com dez pontos abertos na cabeça de Tito pela batida literal do violão de João. Tito ainda mostra mágoa quando fala do assunto. "Essa música é linda", exaltou o ex-amigo no palco, antes de repetir um trecho.
Tendo, assim como Tito, hospedado João em sua casa nos primórdios da bossa nova e também com um violão quebrado em sua biografia, Sérgio Ricardo foi homenageado em seguida com a interpretação de "O Nosso Olhar", outra peça rara no repertório de João. Denis Brean (1920-1969) foi o terceiro reverenciado, mas com uma peça freqüente, "Bahia com H".
Essas escolhas, entremeadas por falas descontraídas, confirmaram um João relaxado, feliz de estar no palco, chegando a se recostar na cadeira após "Bahia com H". Ele até sorriu durante "Samba de uma Nota Só" e "Garota de Ipanema", a música que encerrou a noite com ar renovado, sem parecer tão gasta pela maciça standardização.

Detalhes
E isso João faz como ninguém: revitalizar aquilo que canta há 40, 50 anos, mexendo com obsessão em detalhes. Há quem ache tudo a mesma coisa. Tudo bem, é o tempo das falsas e efêmeras novidades. Mas também há quem se divirta ou se emocione ouvindo-o, por exemplo, ampliar a distância entre frases de "Wave" e evocar um berimbau no violão em "Você Já Foi à Bahia?".
Talvez por estar novamente cantando para uma platéia brasileira, João montou pequenos blocos, juntando num deles "Corcovado", "Samba do Avião" e "Lígia" (todas com música e letra de Tom Jobim e ambientadas no Rio), e em outro "Você Já Foi à Bahia?", "Rosa Morena" e "Morena Boca de Ouro" -as duas primeiras, de Dorival Caymmi; a terceira, de Ary Barroso, mas com morenice afim à segunda.
Apesar da tensão inicial, a linda "Caminhos Cruzados", a quarta a ser cantada, foi um dos momentos altos da noite. Na quinta, a balançada "Doralice", João já estava mais solto.
Depois, entre outras, vieram "Meditação", "Preconceito", "Disse Alguém" (versão de "All of Me") e as indefectíveis "O Pato", "Desafinado", "Chega de Saudade" e "Isto Aqui o que É?", sempre com algum toque diferente, com alguma bossa nova a lembrar que até vale esperar cinco anos -e mais 97 minutos- para passar uma hora e meia tão especial: em silêncio, sem escutar celulares, ouvindo apenas João.

Avaliação: ótimo



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