São Paulo, sábado, 16 de setembro de 2000

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O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO
Fã de Machado de Assis, o autor Philip Roth fala sobre seus livros, os EUA e novos planos
"Bush está lutando para enterrar os anos 60"

DE NOVA YORK

Leia a seguir a entrevista que o escritor norte-americano Philip Roth deu à Folha, na semana passada, a pretexto do lançamento de "Casei com um Comunista" no Brasil pela Cia. das Letras.
(SÉRGIO DÁVILA)

Folha - Após se separarem, sua ex-mulher, a atriz Claire Bloom, escreveu um livro de memórias em que pinta um retrato pouco lisonjeiro do senhor. O jornal "The New York Times" chegou a especular se "Casei com um Comunista", em que a mulher do personagem principal o entrega aos inquisidores do macarthismo, não seria uma resposta velada sua. É?
Philip Roth -
Você não deve acreditar em tudo o que lê no "The New York Times" (risos). Na verdade, isso é irrelevante. Nos anos 50, eu era um estudante de faculdade, um quase-adulto consciente que pendia para o lado da esquerda. Isso não era tão incomum como se pode pensar hoje em dia. Não cheguei a ser atingido diretamente pelo macarthismo, embora tenha formado minha opinião naquela época.
Agora, acabou a esquerda na América (empolgado). Só temos direita e centro, que são os democratas (acalmando-se). Minha família era de pessoas comuns, mas de esquerda, como a maioria dos trabalhadores então. Descobri depois que tinha até tios que eram secretamente membros do Partido Comunista. Como um observador atento, não pude deixar de escrever sobre tudo aquilo depois.

Folha - Por que a linha entre ficção e autobiografia é sempre tão tênue em sua obra?
Roth -
Tudo o que eu escrevo passa antes pelo filtro de minha imaginação, mesmo que tenha acontecido comigo de verdade antes. Então considero tudo ficção. Mas há uma divisão formal entre meus livros que são baseados em fatos reais e os que são simplesmente criados.

Folha - Mas mesmo aí a fronteira é muito sutil.
Roth -
Sim, assim como a fronteira entre o México e o Texas. Você pode ultrapassá-la facilmente, mas também pode acabar levando um tiro...

Folha - Em "Pastoral Americana", o sr. parece dar uma dimensão quase fundamental à Guerra do Vietnã e aos anos 60 para a formação dos Estados Unidos atuais. Foi mesmo assim?
Roth -
Foi uma tragédia, terrível para o país e o mundo. A América mudou tremendamente, mas não só por causa da guerra. Os EUA mudaram porque sofreram muita influência de uma década inteira. Os anos 60 começam de verdade em 1963, com o assassinato de John Kennedy, e terminam em 1974, com o fim da Guerra do Vietnã.
Foi nessa década que tudo aconteceu, tudo parecia novo, e o país foi completamente alterado depois desse período. Teria de ficar seis horas dizendo o que mudou depois disso, mas, para caber numa resposta de entrevista, digo que tudo mudou aí -a relação dos EUA com o resto do mundo, a relação dos americanos com as americanas, o começo de verdade da revolução sexual.
Afetou os velhos costumes e começou uma revolução que continua valendo. Os hábitos sexuais de hoje em dia lembram muito vagamente os da América em que nasci e cresci, por causa dos anos 60.
Tanto que a agenda do Partido Republicano desde então foi combater os anos 60. E eles continuam combatendo os anos 60. E vão continuar pelos próximos 30 anos. Isso definiu a agenda do partido, essa é a vida deles. Se você pensar bem, George W. Bush está lutando na verdade para ser eleito e enterrar os anos 60.

Folha - Talvez não seja uma coincidência que sua trilogia acabe no mesmo ano em que termina a era Clinton.
Roth -
A sorte é minha (risos). Estou brincando. Se Bill Clinton concorresse de novo neste ano, ele ganharia de novo. Por uma margem ainda maior do que na última vez, apesar de tudo o que as pessoas pensam sobre ele.

Folha - Mas o fato é que ele não está concorrendo, e sim Al Gore. O que o sr. acha que vem por aí, tanto nos EUA como em seus próximos livros?
Roth -
Antes de tudo, espero que Al Gore vença as eleições. Tudo indica que ele vai. O outro candidato é muito estúpido. George W. Bush não tem capacidade para dirigir nem um armazém de secos e molhados, quanto mais este país. Ainda que o que Al Gore fez, escolher um vice-presidente judeu, é uma jogada para a platéia.
Quanto a mim, vou continuar a fazer o meu trabalho como sempre fiz. Neste sentido, espero que nada mude.

Folha - O sr. já está escrevendo algo?
Roth -
Estou escrevendo algo, sim, mas não sei o que vai acontecer com isso.

Folha - Pode-se dizer a partir deste algo que Nathan Zuckerman, seu alter ego, morreu?
Roth
Não sei. Ainda não decidi qual o destino dele.

Folha - O que o sr. está lendo agora?
Roth -
Não tenho paciência para ficção. Há dois tipos de leitura que faço: por prazer e para estimular minha imaginação quando vou escrever um livro. Estou acabando um ótimo diário, sobre os judeus romenos em Bucareste na época da Segunda Guerra. A Romênia tinha seus próprios massacres de judeus antes mesmo dos alemães nazistas chegarem.
Leio também um aforista do século 18, Chanford, que cometeu suicídio. Uma de suas grandes máximas, que eu imprimi e coloquei em minha mesa para ler todos os dias pela manhã, é: "Você tem de engolir um sapo vivo no café da manhã para evitar encontrar algo mais repugnante até o fim do dia". É cínico o suficiente para você (risos)?

Folha - Podemos esperar algo sobre aforistas franceses do século 18 e judeus romenos dos anos 40 no seu próximo livro?
Roth -
Não sei, poderia muito bem transportar um francês para Nova York e escrever sobre ele...

Folha - O sr. tem o hábito de reler seus livros?
Roth -
Neste momento, estou muito apegado a "The Human Stain", porque é o último que escrevi. Mas é estranho pensar nos outros livros. Para fazer esta entrevista, tentei reler "Casei com um Comunista". Não consegui passar da primeira página. Olhava e achava: "Como fiz isto, o que estava pensando na época?".

Folha - O sr. consideraria reescrever algum de seus livros, como fazem hoje em dia os diretores de cinema com o que consideram seus melhores filmes?
Roth -
Sei que Henry James reescreveu um de seus livros. Não, não reescreveu propriamente, mas revisou seus primeiros livros quando ele já era bem mais velho. Ele relatou à época que foi um dos trabalhos mais dolorosos que já fez.
Concordo com ele. É muito perigoso. Você pode olhar para uma obra antiga e pensar que ela não é boa, mas, com o passar do tempo, você vê que, ainda que o livro o envergonhe, é muito perigoso voltar a se envolver com aquilo de novo. O melhor é esperar que ninguém o leia (risos).
Cada vez que penso no primeiro livro que escrevi, tenho vontade de comprar todos e evitar que alguém mais tenha o desprazer... Mas um livro é como um relacionamento amoroso, ainda que você veja agora quais foram os defeitos do passado, não quer reviver aquela história de verdade.

Folha - Quais escritores o formaram?
Roth -
Não sei dizer um autor, mas poderia dizer alguns livros. Tem alguns muito significativos em minha vida e outros que me fizeram um escritor melhor. Quando li pela primeira vez "Seize the Day" (1956), de Saul Bellow, foi um choque. Como alguém escrevia de maneira tão livre, tão solta, tão diferente de tudo o que vinha sendo feito? O mesmo aconteceu, em outra medida, com livros de Henry James.

Folha - O sr. conhece algo da literatura brasileira?
Roth -
Não muito, mas gosto de Machado de Assis. Li seu "Dom Casmurro". Coloco Capitu ao lado das grandes personagens femininas da literatura de todos os tempos, junto a Ana Karenina e Madame Bovary.
Na minha época da faculdade, seu "Memórias Póstumas de Brás Cubas" era um cult absoluto. Algumas poucas pessoas o conheciam e repassavam um exemplar surrado de mão em mão. Descobri-lo era um prazer de poucos, do qual me orgulho.


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