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E Crumb criou Deus...
Cartunista fala à Folha sobre "Gênesis", sua versão ilustrada do primeiro livro da Bíblia, que chega ao Brasil neste ano
Torsten Silz - 27.mai.04/France Presse
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Crumb e sua típica careta para que os óculos não escorreguem
RAQUEL COZER
DA REPORTAGEM LOCAL
Crumb descansou no quarto
ano. Antes, criou Deus, o paraíso, Adão e Eva. E viu que Eva
era boa. Ou melhor, avantajada.
Após extensa pesquisa, o cartunista Robert Crumb, 66, lança em outubro aquela que é
considerada a principal publicação em HQ no ano. "Gênesis", versão ilustrada do primeiro livro da Bíblia, respeitou
"palavra por palavra" do texto
original. O livro deve sair logo
depois no Brasil, pela Conrad.
O autor de "Fritz the Cat" e
"Mr. Natural", símbolo da contracultura nos anos 60, conversou com a Folha por telefone
na sexta-feira, com a voz tranquila e a ironia que lhe são características. Falou sobre o novo trabalho e sobre não saber
(quase) nada de francês após 18
anos vivendo na França -mora
no sul do país com a mulher, a
cartunista Aline Kominsky-Crumb-, deu opiniões como
sempre ácidas sobre sua terra
natal, defendeu teorias conspiratórias e comentou o uso de
sua obra. Veja trechos a seguir.
FOLHA - Foi difícil definir como desenharia Deus?
ROBERT CRUMB - Bem, tive esse
sonho em que vi Deus, em
2000. Foi intenso e vívido, teve
efeito profundo em mim. Mas
não pude olhar por muito tempo. A forma como o desenhei
lembra só vagamente como era
no sonho. Também me baseei
em imagens de Deus na cultura
ocidental, o patriarca de barba
branca e expressão severa.
FOLHA - O sr. iniciou o projeto em
2005. Por que demorou tanto?
CRUMB - Foi o maior projeto
que já fiz. Pesquisei muito, fui
detalhista. Cada página me tomou dois ou três dias, e eram
mais de 200 páginas. Mas fiz
outros projetos nesses quatro
anos, houve interrupções... Como as colaborações com a Aline
para a revista "New Yorker".
FOLHA - O quanto conhecia do texto da Bíblia antes disso?
CRUMB - Não sou estudioso da
Bíblia, ainda não conheço bem
o resto dela, mas de certo me
tornei estudioso do Gênesis. Li
de perto para ter certeza de que
tinha feito os desenhos direito.
Vi meu trabalho como o de um
ilustrador, não o de alguém que
estaria tirando sarro do texto.
Queria, como dizer, revelar o
texto tanto quanto possível.
FOLHA - O sr. não quis tirar sarro...
CRUMB - Não, eu não quis.
FOLHA - ...mas há uma ironia intrínseca ao fato de ilustrar esse texto, que é fazer pessoas pararem para
pensar no que está escrito, não?
CRUMB - Sim, é verdade... No
sentido de fazer pessoas pararem para pensar, existe sim.
FOLHA - Por que decidiu fazer isso?
CRUMB - Estava com uma ideia
de ilustrar o paraíso, e um agente sugeriu que, se eu fizesse todo o Gênesis, ele arrumaria
uma editora que me daria muito dinheiro para isso. Falei:
"Veja o que consegue". Depois
de alguns dias, ele voltou e disse: "Consegui uma editora que
vai pagar muita grana". E respondi: "OK, eu faço isso".
FOLHA - Como avalia a história?
CRUMB - É uma história poderosa. A coisa toda, antes de ser
escrita, foi mantida pela voz do
homem. Algumas das histórias,
com isso, perderam todo o sentido. Como a de Abraão, sendo
um tipo de cafetão da própria
mulher para o faraó do Egito.
Isso é estranho. Minha conclusão é que eu não usaria o Gênesis como um guia moral [risos].
FOLHA - E o personagem Deus...
CRUMB - É duro, severo, patriarcal e tribal. Cuida de sua
tribo, os hebreus, que pressionam os outros. Diz: "Essa terra
será sua, podem pegá-la". E eles
a tiram das pessoas que já estavam lá, os cananeus. Isso é uma
coisa tribal. Naqueles tempos,
cada tribo tinha seu "deus mais
alto". Quando conquista outra
tribo, impõe ao outro povo esse
"deus mais alto". Era comum.
FOLHA - O sr., que sempre foi chamado de chauvinista, na introdução
cita como o homem alterou o Gênesis até apagar o papel da mulher...
CRUMB - Bem, não é a história
da mulher. No começo da cultura suméria, havia um matriarcalismo lado a lado com o
patriarcalismo. À medida que a
sociedade cresceu, foram impostas forças militares, que colocaram no poder seus líderes,
que viraram reis, que impuseram herdeiros. O matriarcalismo perdeu poder. De certa forma, isso sobrevive no Gênesis,
se você olha com cuidado.
FOLHA - Já faz quase 20 anos que o
sr. mudou para a França, certo?
CRUMB - Faz 18 anos.
FOLHA - Fala algo em francês?
CRUMB - Não falo nada em
francês. Minha mulher fala.
Não vou a cafés, fico em casa.
Quero dizer, posso ir ao mercado livre e perguntar se há discos
antigos: "Est-ce que vous avez
des disques 78 tours?". Isso eu
posso fazer. Mas não conversar.
FOLHA - Como é seu dia a dia? Imagino que não leia jornais...
CRUMB - Não. Ouço discos antigos e leio muitos livros. Virei
um leitor voraz. Leio livros de
jornalismo investigativo, que
expõem meandros do sistema
financeiro, da corrupção...
FOLHA - E os desenhos em parceria
com a Aline, como funcionam?
CRUMB - Depende. Trabalho as
ideias dela, passamos de um para o outro. Funciona bem. Aline
é uma comediante judia nata.
FOLHA - O sr. acha que o traço dela
melhorou ao longo dos anos?
CRUMB - Não... [risos]. Não ficou melhor do que era. Os desenhos dela são crus, mas são engraçados. O que você vê é tão
honesto, primitivo...
FOLHA - Faz oito anos que os EUA
sofreram os ataques de 11 de Setembro. Acredita que o país mudou?
CRUMB - É complicado. Foi a
primeira vez que houve um ataque daquelas proporções nos
EUA, supostamente de fora.
Pessoalmente, acho que o governo americano estava envolvido. Muita coisa não foi contada. Aquilo não poderia ser feito
sem a ajuda de alguém de dentro. Com todos os livros que li,
sabendo o que sei sobre o mundo financeiro, militar... Não duvido de que tenham feito isso,
ao custo de milhares de vidas.
FOLHA - Na internet há muita gente que pensa assim... E está mais otimista agora, com o Obama?
CRUMB - Espero o melhor, que
ele consiga realizar algo. Eu o
acho um cara decente, que quer
fazer a coisa certa. Mas, sabe,
há políticos, organizações, que
estão fazendo de tudo para matar o cara. Não literalmente,
mas matar o que ele tenta fazer,
para fazê-lo parar. Mas ele é um
cara limpo, eles não conseguem
achar nenhum escândalo sexual, financeiro, nada.
FOLHA - Após "Fritz the Cat", ainda
tentam fazer filmes de suas HQs?
CRUMB - Por anos, de tempos
em tempos, alguém pedia para
tornar meus cartuns em filmes.
Cheguei até a autorizar, mas
sempre deu em nada. Agora
querem usar minhas coisas na
internet, em iPhones, porcarias
assim. Há uma pressão para pôr
minhas coisas nesses negócios
eletrônicos. Tenho me sentido
obrigado a lidar com isso...
FOLHA - Significa que veremos algo do sr. em celulares em breve?
CRUMB - Estou negociando.
Pode ser que fale: "Danem-se,
não quero". É tudo experimental. Ver HQ no celular? Sei lá...
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