São Paulo, sexta-feira, 16 de setembro de 2011

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Última Moda

VIVIAN WHITEMAN, em Nova York - ultima.moda@grupofolha.com.br

Fogo contra fogo

POLÍTICA, LIBERDADE E GUERRA SE MISTURAM NA TEMPORADA VERÃO 2012 DA SEMANA DE MODA DE NOVA YORK, QUE ACABOU ONTEM

O que o discurso do presidente Barack Obama por conta dos dez anos do 11 de Setembro, um filme sobre o movimento Black Power americano e a Semana de Moda de Nova York têm em comum?
Para destrinchar essa charada, o discurso de Obama aos norte-americanos é um ótimo ponto de partida. Além de repetir a missa sobre a importância do heroísmo de bombeiros, policiais e cidadãos comuns no dia dos atentados, o presidente chegou a uma conclusão reveladora.
Obama apontou a necessidade de transformar dificuldades em coisas boas (botando no mesmo balaio solidariedade, negócios, guerra e política) como uma das forças motrizes da sociedade americana.
De Obama, o primeiro presidente negro dos EUA, façamos um corte para o documentário "The Black Power Mixtapes 1967-1975". O filme, já exibido no festival brasileiro É Tudo Verdade, acaba de entrar em cartaz em Nova York e foi recebido com críticas muito positivas.
Trata-se de um conjunto de gravações feitas de 1967 a 1975 por um grupo de suecos com lideranças do movimento negro dos EUA, incluindo líderes do partido Panteras Negras. Os registros são comentados por gente como a icônica militante Angela Davis e por nomes da música contemporânea como Erikah Badu e Talib Kweli.
Numa das passagens do filme, Kweli conta como foi abordado pelo FBI por estar trabalhando com uma série de fitas com discursos de Stokely Carmichael, líder negro e uma das personagens mais emblemáticas da fita e da história da luta contra o racismo nos EUA. Mas o que a moda tem a vercom isso?

O MÉDICO É O MONSTRO
A temporada primavera-verão 2012 de Nova York não poderia estar mais afinada com o discurso de Obama. O CFDA (Conselho dos Designers de Moda da América), criado em 2001 para proteger o setor fashion da crise pós-atentados, recebeu milhões em doações e teve um recorde de novas adesões graças aos dez anos dos ataques. O que era desastre vira ouro, como lembrou o presidente.
Nas passarelas, os estilistas trocaram a alternância das últimas temporadas -uma estação escura e pragmática para lembrar as crises, e outra mais colorida e desencanada para incentivar o otimismo- por uma síntese bipolar.
O resultado é uma roupa sem invenções, mas não austera. Comercial, mas com ares de festa. Um exemplo icônico é a coleção da influente grife Rodarte, com suas meninas gótico-tropicais, misto de decadência e fertilidade.
Outra boa vitrine dessa tendência foi o desfile de Tommy Hilfiger, um dos papas do estilo americano e uma das cabeças influentes do CFDA.
Na passarela de Hilfiger, a roupa de férias na praia se mistura com a de guerra. O balneário encontra os uniformes camuflados, fazendo de ambos faces da mesma moeda. Na história americana não tão recente, basta pensar nas crises e períodos de bonança desde a Primeira Guerra. Os momentos de glamour e fartura estão diretamente ligados aos de conflitos armados e às violentas crises internas.

MAMA ÁFRICA
Duas referências presentes em dezenas de coleções da temporada são o esportivo, conectado ao estilo hip-hop, e o africanismo estilizado. O que nos leva de volta ao "The Black Power Mixtapes". Uma das críticas do filme se refere à romantização de uma África ancestral de onde os negros americanos teriam vindo, como se os EUA fossem, para eles, um segundo lar.
Esse discurso, segundo observam os militantes no filme, serviu (e ainda serve) para esconder que boa parte dos negros é tratada como cidadão de segunda classe nos EUA, embora tenham, por exemplo, participação massiva nas categorias de base das Forças Armadas e, portanto, sejam peças-chave nas guerras empreendidas pelo país.
Já o hip-hop, movimento que a parte contemporânea do filme aponta como herdeiro da luta antirracial nos EUA, aparece domado. O filho de Tommy Hilfiger virou rapper, Karl Lagerfeld está no novo clipe de Snoopy Dogg, e Kanye West deve estrear sua grife na semana de moda de Paris.
A moda quer incorporar o rap, mas o faz à sua maneira: tratando-o como um elemento exótico que precisa ser formatado e submetido aos padrões da sociedade capitalista que gerou e continua gerando exatamente os problemas cantados pelo rap.
Não se trata de criticar o estilo americano nem o mercado fashion do país. Longe de realmente criar tendências, o que a moda faz é transformar em imagem e roupa os modos e as ideologias da sociedade em que está inserida.
Num cenário em que o fogo da tocha otimista da "terra dos livres" é sustentado pelo fogo da guerra, interessante notar que as cores da labareda dominaram a temporada: azul, laranja e amarelo.
O que Obama, com suas palavras veladas, e o filme, com seu discurso combativo, dizem sobre isso é que, para manter essa tocha acesa, muitos (certamente não a elite branca e rica) são sacrificados no fogo cruzado.

FOLHA.com

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com PEDRO DINIZ


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