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São Paulo, quinta-feira, 16 de outubro de 2003

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GASTRONOMIA

História no galinheiro

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Na última crônica falamos de galinha morta. Vamos a ela, viva. Tudo o que escrever será por ouvir dizer ou ler, a história da galinha é meio atropelada. Parece que galinha nem fóssil tem, vítima de trituradores glutões de seus ossinhos saborosos.
Foi contemplada por Aristóteles, Plínio, Aldrovandi. É meio arroz de festa, está em todos os quintais e terreiros há milênios, pintada, filmada, estudada. A galinha está em todas, mas na dela. Pensei também que as galinhas, tinham nascido e morrido de avental, que nunca haviam sido deusas nem inspirado aos humanos pensamentos para o alto, na sua corruptibilidade miúda. Errei. Já frequentaram os templos e altares, cerimônias religiosas, elas e seus ovos e vísceras. Não vou entrar em grandes detalhes porque essas histórias se esquecem com a mesma facilidade com que são lidas, entram por um ouvido e saem pelo outro.
Bem, quem foi que começou a comer a galinha? Foi o povo de Delfos, aqueles adivinhões. Não se contentaram com os ovos e passaram a comê-la assada no seu próprio molho gordo.
Muitos se indignaram, pois tanto o galo como a galinha são símbolos ideais. Ela, com seus ovos de perfeito design, e ele, com seu apetite sexual insaciável. A galinha foi vivendo, mágica ou bruxa, ou só útil, poedeira, prática, a função dela era ser coberta pelo galo e produzir seus ovos, o que já acho tarefa de bom tamanho.
Enquanto a galinha ia andando sem se preocupar muito com a história, o galo foi comparado a reis em seus tronos, símbolo de beleza, majestade, potência, sexualidade. Ave diligente, libidinoso, beligerante, impudente, fanfarrão, vaidoso, desenfreado. Anuncia o dia, a ressurreição, é o próprio Cristo, bom provedor. Guardião, amigo de Eros e de Hermes, jogador, rei das arenas. Nunca servo nem servil.
Em muitas línguas, a palavra galo, como no inglês "cock", é sinônimo de pênis. Intriga-me um pouco os homens brasileiros terem substituído galo por pinto, mas é lá com eles.
Gosto de saber das galinhas modernas, atuais, e os amigos me mandam as novidades. Há um concurso de Miss Galinha numa cidadezinha perdida, onde as bichinhas são maquiadas, enfeitadas com brincos e turbantes, pulseira dourada na canela, tutu de filó, óculos de gatinho. Nem dá para acreditar, qual outro bicho aguentaria a infâmia sem piar?
Um cientista japonês, ou um japonês metido a cientista, descobriu que as nervosas meninas desorientadas e com tendência à depressão, à roxa depressão, se acalmavam com lentes de óculos roxas. Levou a cabo a experiência. Do alto de seus poleiros passaram a enxergar em plangente roxo. Tudo. O galo, o milho, o riacho. A vida, enfim. É cada uma!
As coisas, porém, podem mudar um dia. O filósofo romano Julius Alexandrinus diz, confirmando Aristóteles: "Eu tenho visto galinhas aqui e ali que se apoderaram do espírito dos machos depois de alguma vitória sobre eles, cobrem o galo como no coito, em tentativas infrutíferas, é claro, mas às quais se acostumaram".
Cortázar também nos faz vislumbrar outros tempos com a mensagem que recebeu de uma galinha em mutação.
"Por galinha uma escrito.
Com o acontecido estamos conosco entusiasmadas. Rapidamente do apoderar mundo iremos nos, oba. Era um inofensivo aparentemente foguete lançado Canaveral. Americanos Cabo do pelos. Razões desconhecidas por órbita da desviou se e provavelmente algo ao atritar se com invisível e Terra retornou à. Crista caiu nos na ploft, mutação instantânea entramos em. Rapidamente a multiplicar aprendendo de taboada estamos, prendadas muito literatura para a somos da história, química um menos pouco, desajeitadas agora até esportes para, importância tem, não: das será galinhas estratosfera, da frente sai, carajo que."
Aos leitores que se interessarem, mando algumas receitas de testículos de galo e uma de coq au vin. O galo em sua essência, papado com acompanhamento. É só pedir por e-mail.
ninahort@uol.com.br

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