São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2010

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OPINIÃO "TROPA DE ELITE 2"

Filme livra cinema brasileiro da irrelevância

Diretor usa o clichê a serviço da comunicação de um generoso mas feroz desejo de intervenção no real do país

GUSTAVO DAHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cada cachorro que lamba sua caceta, como diz o vilão de "Tropa de Elite 2". Ou seja, cada país se dá o cinema que acha que merece e por isso mesmo, merece.
Idiossincrasias à parte, paira sobre o cinema brasileiro atual um fantasma: sua irrelevância. Não se trata de nostalgia do tempo em que conteúdo era mensagem e forma era forma. O cinema moderno antigo (neorrealismo, nouvelle vague, cinema novo) já havia aprendido com as vanguardas modernistas do início do século 20 que não há conteúdo revolucionário sem forma idem.
Hoje, a noção de conteúdo imbrica trama, estrutura dramática, personagens (de preferência com densidade psicológica), diálogos vivos, decupagem eficiente e direta, direção (cinematografia) que dê concretude a ideias e sentimentos intangíveis, fotografia que revele e comente o real, ao vivo e a cores, câmera que saiba ser agitada na mão e serena no tripé, montagem curta mas com balanço, nem burocrática nem frenética, boa de planos breves mas também de planos longos, intérpretes em que o tipo físico e a representação se adequam e confundem, ambientação realística como um noticiário de televisão, mas que seja também um teatro em que se dão dramas ou operações de combate.
Em suma, "Tropa de Elite 2", de José Padilha & Cia. Porém, mais do que forma, linguagem, estilo, o que impressiona no filme é sua coragem de se referenciar ao contemporâneo.
Quando, em 1932, Howard Hawks fez "Scarface", sobre o gangsterismo que vicejava em Chicago, mandou o roteiro para Al Capone, para perguntar se estava tudo bem.
Padilha, com a mesma contemporaneidade, não pediu licença a ninguém, foi fazendo. As milícias paramilitares na Cidade Maravilhosa, que o vulgo também conhece como "melissa", traem a noção elementar do Estado como o detentor do monopólio da violência, segundo Max Weber.
Os traficantes de drogas ilícitas já haviam invadido militarmente sua territorialidade, criando espaços autônomos em que a autoridade do Estado não prevalecia.
Era simplesmente uma invasão física, geográfica. Há um trecho da avenida Brasil apelidado sintomaticamente de Faixa de Gaza. Rio de Janeiro, a cidade partida, a serpente branca das praias se enredando na serpente negra das favelas.
As milícias fizeram melhor -circunscrevem e ocupam todo o tecido social de uma área determinada, em associação com as instituições constituídas.
Policiais militares em desgraça, bombeiros fazendo bico, matadores profissionais, delatores, vereadores e deputados chefes de quadrilha, acobertados pelo mandato, apresentadores de televisão. A fina flor da malandragem se vendendo inicialmente como proteção da população ordeira e, depois, extorquindo-a em nome da autodefesa.

VOCAÇÃO PARA O MAL
Um novo velho modelo de negócios, sucessor daquele agressivamente fratricida do tráfico. Saímos de "Carandiru", passamos pela "Cidade de Deus", pela hoje quase inocente "Tropa de Elite" original e continuamos até o número dois, pois, diz o subtítulo, "o inimigo agora é outro". Ele atravessa transversalmente toda a sociedade e os poderes públicos brasileiros.
É o "sistema" e sua harmoniosa vocação para o Mal, protegida por uma democracia representativa que não é representativa. Instituições que não são institucionais. É o Brasil? Não, é "Tropa de Elite 2". Realidade contemporânea na veia.
A grandeza e a nobreza do filme de José Padilha está em sua capacidade de implodir as barreiras entre esta realidade e sua representação. Já em "Ônibus 174", editando material ido ao ar pela televisão alternado com entrevistas circunvizinhas e paisagens, ele confundia estas duas dimensões.
Paradoxalmente, algo a ver com "Jogo de Cena", de Eduardo Coutinho. Ao mesmo tempo, "Carvoeiros" ou "Garapa" não deixam dúvidas quanto à sua urgência de intervenção social.
É esta acre sinalização de que, apesar de uma realidade implacável, e talvez por isso mesmo, um outro mundo seja possível.
A complexidade humana de seus personagens faz com que eles se transformem -ou não- ao longo da narrativa. Por serem vilões, como nos grandes filmes de Orson Welles ("Cidadão Kane", "Grilhões do Passado", "A Marca da Maldade"), não deixam de ser humanos.
E os heróis, como o coronel Nascimento e o professor defensor profissional dos direitos humanos, podem, por sua vez, ter momentos fracos e até canalhas. Mesmo a doce esposa e mãe de família pode casar-se de novo com o maior rival do marido. Estamos entre Shakespeare e Nelson Rodrigues. Aos políticos profissionais é reservado, sem redenção possível, o inferno eterno da mediocridade.
Ao mesmo tempo, os roteiristas Bruno Mantovani e Padilha sabem utilizar os clichês míticos e catárticos do cinema comercial em causa própria. O policial que vê atacada sua família e se transforma em vingador é um clássico do cinema americano. E a chegada da tropa amiga na situação de perigo final fica pedindo um toque de corneta da Cavalaria.
Mas, como tudo é plausível, o uso do clichê se põe a serviço da comunicação de um generoso, mas feroz desejo de intervenção sobre o real do país. Sem bom mocismo nem paternalização. Como nos grandes filmes da história do cinema, o filme fala de seres humanos que constroem ou destroem suas civilizações. Melhor ainda, é relevante, sem prejuízo do sucesso. Não é pouco.


GUSTAVO DAHL é cineasta. Presidiu a Ancine (Agência Nacional do Cinema). Dirige a revista "Filme Cultura" e o CTAv (Centro Técnico do Audiovisual)


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