|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros
O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo.
OPINIÃO "TROPA DE ELITE 2"
Filme livra cinema brasileiro da irrelevância
Diretor usa o clichê a serviço da comunicação de um generoso mas feroz desejo de intervenção no real do país
GUSTAVO DAHL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Cada cachorro que lamba
sua caceta, como diz o vilão
de "Tropa de Elite 2". Ou seja,
cada país se dá o cinema que
acha que merece e por isso
mesmo, merece.
Idiossincrasias à parte,
paira sobre o cinema brasileiro atual um fantasma: sua irrelevância.
Não se trata de nostalgia
do tempo em que conteúdo
era mensagem e forma era
forma. O cinema moderno
antigo (neorrealismo, nouvelle vague, cinema novo) já
havia aprendido com as vanguardas modernistas do início do século 20 que não há
conteúdo revolucionário
sem forma idem.
Hoje, a noção de conteúdo
imbrica trama, estrutura dramática, personagens (de preferência com densidade psicológica), diálogos vivos, decupagem eficiente e direta,
direção (cinematografia) que
dê concretude a ideias e sentimentos intangíveis, fotografia que revele e comente o
real, ao vivo e a cores, câmera
que saiba ser agitada na mão
e serena no tripé, montagem
curta mas com balanço, nem
burocrática nem frenética,
boa de planos breves mas
também de planos longos,
intérpretes em que o tipo físico e a representação se adequam e confundem, ambientação realística como um noticiário de televisão, mas que
seja também um teatro em
que se dão dramas ou operações de combate.
Em suma, "Tropa de Elite
2", de José Padilha & Cia.
Porém, mais do que forma,
linguagem, estilo, o que impressiona no filme é sua coragem de se referenciar ao
contemporâneo.
Quando, em 1932, Howard
Hawks fez "Scarface", sobre
o gangsterismo que vicejava
em Chicago, mandou o roteiro para Al Capone, para perguntar se estava tudo bem.
Padilha, com a mesma
contemporaneidade, não pediu licença a ninguém, foi fazendo. As milícias paramilitares na Cidade Maravilhosa,
que o vulgo também conhece
como "melissa", traem a noção elementar do Estado como o detentor do monopólio
da violência, segundo Max
Weber.
Os traficantes de drogas
ilícitas já haviam invadido
militarmente sua territorialidade, criando espaços autônomos em que a autoridade
do Estado não prevalecia.
Era simplesmente uma invasão física, geográfica.
Há um trecho da avenida
Brasil apelidado sintomaticamente de Faixa de Gaza.
Rio de Janeiro, a cidade partida, a serpente branca das
praias se enredando na serpente negra das favelas.
As milícias fizeram melhor
-circunscrevem e ocupam
todo o tecido social de uma
área determinada, em associação com as instituições
constituídas.
Policiais militares em desgraça, bombeiros fazendo bico, matadores profissionais,
delatores, vereadores e deputados chefes de quadrilha,
acobertados pelo mandato,
apresentadores de televisão.
A fina flor da malandragem se vendendo inicialmente como proteção da população ordeira e, depois, extorquindo-a em nome da autodefesa.
VOCAÇÃO PARA O MAL
Um novo velho modelo de
negócios, sucessor daquele
agressivamente fratricida do
tráfico. Saímos de "Carandiru", passamos pela "Cidade
de Deus", pela hoje quase
inocente "Tropa de Elite" original e continuamos até o número dois, pois, diz o subtítulo, "o inimigo agora é outro".
Ele atravessa transversalmente toda a sociedade e os
poderes públicos brasileiros.
É o "sistema" e sua harmoniosa vocação para o Mal,
protegida por uma democracia representativa que não é
representativa. Instituições
que não são institucionais. É
o Brasil? Não, é "Tropa de Elite 2". Realidade contemporânea na veia.
A grandeza e a nobreza do
filme de José Padilha está em
sua capacidade de implodir
as barreiras entre esta realidade e sua representação.
Já em "Ônibus 174", editando material ido ao ar pela
televisão alternado com entrevistas circunvizinhas e
paisagens, ele confundia estas duas dimensões.
Paradoxalmente, algo a
ver com "Jogo de Cena", de
Eduardo Coutinho. Ao mesmo tempo, "Carvoeiros" ou
"Garapa" não deixam dúvidas quanto à sua urgência de
intervenção social.
É esta acre sinalização de
que, apesar de uma realidade implacável, e talvez por isso mesmo, um outro mundo
seja possível.
A complexidade humana
de seus personagens faz com
que eles se transformem -ou
não- ao longo da narrativa.
Por serem vilões, como
nos grandes filmes de Orson
Welles ("Cidadão Kane",
"Grilhões do Passado", "A
Marca da Maldade"), não
deixam de ser humanos.
E os heróis, como o coronel Nascimento e o professor
defensor profissional dos direitos humanos, podem, por
sua vez, ter momentos fracos
e até canalhas. Mesmo a doce
esposa e mãe de família pode
casar-se de novo com o maior
rival do marido. Estamos entre Shakespeare e Nelson Rodrigues.
Aos políticos profissionais
é reservado, sem redenção
possível, o inferno eterno da
mediocridade.
Ao mesmo tempo, os roteiristas Bruno Mantovani e Padilha sabem utilizar os clichês míticos e catárticos do
cinema comercial em causa
própria.
O policial que vê atacada
sua família e se transforma
em vingador é um clássico do
cinema americano. E a chegada da tropa amiga na situação de perigo final fica pedindo um toque de corneta
da Cavalaria.
Mas, como tudo é plausível, o uso do clichê se põe a
serviço da comunicação de
um generoso, mas feroz desejo de intervenção sobre o
real do país. Sem bom mocismo nem paternalização.
Como nos grandes filmes
da história do cinema, o filme fala de seres humanos
que constroem ou destroem
suas civilizações. Melhor ainda, é relevante, sem prejuízo
do sucesso. Não é pouco.
GUSTAVO DAHL é cineasta. Presidiu a
Ancine (Agência Nacional do Cinema).
Dirige a revista "Filme Cultura" e o CTAv
(Centro Técnico do Audiovisual)
Texto Anterior: Não Ficção Próximo Texto: Frases Índice | Comunicar Erros
|