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CINEMA - MOSTRA DE SÃO PAULO
Festival faz justiça à obra de Mizoguchi
LÚCIA NAGIB
da Equipe de Articulistas
"O melhor cineasta do mundo,
ao lado de Jean Renoir." Assim se
referiu a Kenji Mizoguchi o crítico
Jean Douchet, dos "Cahiers du Cinéma", certa vez em palestra em
São Paulo. Concordando-se ou
não, é de estranhar que os cem
anos do grande cineasta japonês,
completados em maio passado,
não tenham merecido as mesmas
honras dedicadas a Eisenstein ou
Brecht, cujos centenários foram
amplamente comemorados este
ano.
A retrospectiva Mizoguchi da
Mostra Internacional de Cinema,
com seus 13 títulos, constitui portanto a primeira homenagem digna à obra monumental de Mizoguchi, que ao longo da vida dirigiu 85
filmes, dos quais, infelizmente,
apenas 30 foram conservados.
Foi na verdade por meio de Mizoguchi que a Europa começou
realmente a descobrir o cinema japonês. "Oharu - A Vida de uma
Cortesã", premiado em Veneza em
1952, provocou um deslumbramento entre a crítica européia que
iria aumentar nos anos seguintes,
com "Contos da Lua Vaga" e "O
Intendente Sansho". Claro que o
cinema japonês já vinha se popularizando graças a Kurosawa e seu
sucesso com "Rashomon" (1946).
Mas o surgimento de Mizoguchi
instantaneamente fez desabrochar
um novo Japão aos olhos ocidentais. Ou um "verdadeiro" Japão, no
dizer de André Bazin, que considerava o cinema de Mizoguchi "autenticamente japonês", ao contrário do de Kurosawa, cuja montagem rápida de cinema de ação lhe
parecia "americanizada". Godard
chegou ao exagero de considerar
Kurosawa um diretor de "segunda
classe" comparado a Mizoguchi.
A razão desse "parti-pris" se deve a um famoso -e ainda mal explicado- "realismo" de Mizoguchi, fundado num também célebre
plano-sequência, que no tempo do
cineasta era chamado de "uma cena/um corte".
De fato, Mizoguchi se especializou como ninguém em perseguir
seus atores com a câmera, sem cortes, ao longo de vários ambientes,
às vezes lidando com centenas de
figurantes que tinham de agir em
perfeita coordenação. Um único
erro obrigava a repetição da mesma cena dezenas de vezes. Bazin e
alguns seguidores acreditavam
que a fidelidade ao tempo real conferia à obra um caráter realista, o
que constituía para eles a principal
qualidade de um filme.
Hoje sabe-se, porém, quantos
equívocos continha essa visão. Para começar, Kurosawa nunca foi
um adversário de Mizoguchi, mas
seu discípulo, sobretudo no que
concerne às influências americanas, abundantes em seu colega.
Quanto ao realismo, o equívoco
era ainda maior. Mizoguchi quase
nunca filmou em locações, preferindo o artifício acintoso do estúdio, com suas paisagens pintadas e
suas névoas de gelo seco. À encenação naturalista preferia a teatral,
declaradamente extraída do kabuki e do teatro nô, aos quais não
cansou de homenagear em seus filmes. A inesquecível aparição de
Machiko Kyo, a princesa-fantasma
de "Contos da Lua Vaga", não passa da reprodução cuidadosa de
uma máscara de nô. E a obra-prima "Crisântemos Tardios" nada
faz senão explorar, nos mínimos
detalhes, as regras do kabuki.
Por fim, o plano-sequência raramente reproduzia o fluxo real do
tempo, provocando às vezes, ao
contrário, formidáveis elipses
temporais. Exatamente aí reside a
qualidade, por exemplo, de "Contos da Lua Vaga". Seus abundantes
planos-sequências e fusões permitem a Mizoguchi não mimetizar,
mas embaralhar o tempo e o espaço. Dois momentos inesquecíveis:
o ceramista se banha nas termas
com a princesa Wakasa; a câmera
os abandona num travelling à esquerda, pelas pedras do chão, que
se fundem com um gramado; e
continua em travelling para apanhar do outro lado o mesmo casal,
já vestido e namorando na grama.
E o que constitui, talvez, o mais
famoso plano-sequência do cinema: o ceramista retorna ao lar sem
saber que a esposa faleceu. Entra
em seu casebre, escuro e abandonado, e sai pelos fundos; a câmera
o acompanha e volta pela parede
de dentro, apanhando mais uma
vez o ceramista, que entra de novo
pela porta da frente. Mas, desta
vez, encontra o casebre iluminado
e sua mulher trabalhando junto ao
fogão: tempo e espaço reais e imaginários se fundem num só plano.
Quando se fala de realismo em
Mizoguchi, deve-se compreender
antes de tudo seus filmes de preocupação social do pré-guerra. É
nesse período que se desenvolve
seu tema predileto, o da mulher sacrificada pelo sucesso do homem.
Aqui também as obras-primas são
várias: "Elegia de Osaka", "As Irmãs de Gion", "Crisântemos Tardios", "Mulheres da Noite", "Senhorita Oyu", com Kinuyo Tanaka, atriz favorita de Mizoguchi e
sua eterna (e real) paixão.
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