São Paulo, sexta, 16 de outubro de 1998

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CINEMA - MOSTRA DE SÃO PAULO
Festival faz justiça à obra de Mizoguchi

LÚCIA NAGIB
da Equipe de Articulistas

"O melhor cineasta do mundo, ao lado de Jean Renoir." Assim se referiu a Kenji Mizoguchi o crítico Jean Douchet, dos "Cahiers du Cinéma", certa vez em palestra em São Paulo. Concordando-se ou não, é de estranhar que os cem anos do grande cineasta japonês, completados em maio passado, não tenham merecido as mesmas honras dedicadas a Eisenstein ou Brecht, cujos centenários foram amplamente comemorados este ano.
A retrospectiva Mizoguchi da Mostra Internacional de Cinema, com seus 13 títulos, constitui portanto a primeira homenagem digna à obra monumental de Mizoguchi, que ao longo da vida dirigiu 85 filmes, dos quais, infelizmente, apenas 30 foram conservados.
Foi na verdade por meio de Mizoguchi que a Europa começou realmente a descobrir o cinema japonês. "Oharu - A Vida de uma Cortesã", premiado em Veneza em 1952, provocou um deslumbramento entre a crítica européia que iria aumentar nos anos seguintes, com "Contos da Lua Vaga" e "O Intendente Sansho". Claro que o cinema japonês já vinha se popularizando graças a Kurosawa e seu sucesso com "Rashomon" (1946).
Mas o surgimento de Mizoguchi instantaneamente fez desabrochar um novo Japão aos olhos ocidentais. Ou um "verdadeiro" Japão, no dizer de André Bazin, que considerava o cinema de Mizoguchi "autenticamente japonês", ao contrário do de Kurosawa, cuja montagem rápida de cinema de ação lhe parecia "americanizada". Godard chegou ao exagero de considerar Kurosawa um diretor de "segunda classe" comparado a Mizoguchi.
A razão desse "parti-pris" se deve a um famoso -e ainda mal explicado- "realismo" de Mizoguchi, fundado num também célebre plano-sequência, que no tempo do cineasta era chamado de "uma cena/um corte".
De fato, Mizoguchi se especializou como ninguém em perseguir seus atores com a câmera, sem cortes, ao longo de vários ambientes, às vezes lidando com centenas de figurantes que tinham de agir em perfeita coordenação. Um único erro obrigava a repetição da mesma cena dezenas de vezes. Bazin e alguns seguidores acreditavam que a fidelidade ao tempo real conferia à obra um caráter realista, o que constituía para eles a principal qualidade de um filme.
Hoje sabe-se, porém, quantos equívocos continha essa visão. Para começar, Kurosawa nunca foi um adversário de Mizoguchi, mas seu discípulo, sobretudo no que concerne às influências americanas, abundantes em seu colega.
Quanto ao realismo, o equívoco era ainda maior. Mizoguchi quase nunca filmou em locações, preferindo o artifício acintoso do estúdio, com suas paisagens pintadas e suas névoas de gelo seco. À encenação naturalista preferia a teatral, declaradamente extraída do kabuki e do teatro nô, aos quais não cansou de homenagear em seus filmes. A inesquecível aparição de Machiko Kyo, a princesa-fantasma de "Contos da Lua Vaga", não passa da reprodução cuidadosa de uma máscara de nô. E a obra-prima "Crisântemos Tardios" nada faz senão explorar, nos mínimos detalhes, as regras do kabuki.
Por fim, o plano-sequência raramente reproduzia o fluxo real do tempo, provocando às vezes, ao contrário, formidáveis elipses temporais. Exatamente aí reside a qualidade, por exemplo, de "Contos da Lua Vaga". Seus abundantes planos-sequências e fusões permitem a Mizoguchi não mimetizar, mas embaralhar o tempo e o espaço. Dois momentos inesquecíveis: o ceramista se banha nas termas com a princesa Wakasa; a câmera os abandona num travelling à esquerda, pelas pedras do chão, que se fundem com um gramado; e continua em travelling para apanhar do outro lado o mesmo casal, já vestido e namorando na grama.
E o que constitui, talvez, o mais famoso plano-sequência do cinema: o ceramista retorna ao lar sem saber que a esposa faleceu. Entra em seu casebre, escuro e abandonado, e sai pelos fundos; a câmera o acompanha e volta pela parede de dentro, apanhando mais uma vez o ceramista, que entra de novo pela porta da frente. Mas, desta vez, encontra o casebre iluminado e sua mulher trabalhando junto ao fogão: tempo e espaço reais e imaginários se fundem num só plano.
Quando se fala de realismo em Mizoguchi, deve-se compreender antes de tudo seus filmes de preocupação social do pré-guerra. É nesse período que se desenvolve seu tema predileto, o da mulher sacrificada pelo sucesso do homem. Aqui também as obras-primas são várias: "Elegia de Osaka", "As Irmãs de Gion", "Crisântemos Tardios", "Mulheres da Noite", "Senhorita Oyu", com Kinuyo Tanaka, atriz favorita de Mizoguchi e sua eterna (e real) paixão.



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