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São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003

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Réquiem para a CINELÂNDIA

Marrocos e Marabá, sobreviventes da época áurea dos cinemas do centro de SP, vão virar multiplex

FÁBIO VICTOR
DA REPORTAGEM LOCAL

Iniciado nos anos 60, o esfacelamento da Cinelândia paulistana pode ser consumado justamente no aniversário de 450 anos da cidade, em 2004.
Dois dos últimos remanescentes da época de ouro dos cinemas de rua, na década de 50, o Marabá, na avenida Ipiranga, e o Marrocos, na rua Conselheiro Crispiniano, ambos no centro, vão se transformar em multiplex. O modelo americano, que concentra várias salas de cinema num mesmo espaço, geralmente em shopping centers, predomina hoje nas principais cidades brasileiras.
O Marabá, da Playarte, é o único grande cinema do centro de São Paulo que segue funcionando sem alterar substancialmente suas características arquitetônicas originais.
A empresa, que recentemente inaugurou o multiplex Bristol, na avenida Paulista, encomendou um projeto ao arquiteto Ruy Ohtake para fazer cinco salas no Marabá.
Busca agora apoio estatal e parcerias na iniciativa privada. "Acreditamos que, até o começo do ano que vem, vamos iniciar as obras. O centro merece um cinema à altura dos que hoje existem nos shoppings", disse o vice-presidente da Playarte, Otelo Bettin Coltro.
Inaugurado em 1945, o Marabá ainda tem capacidade para 1.438 pessoas. Mas o balcão, que pode abrigar 485 espectadores, nem tem sido aberto, por falta de necessidade.
Na tarde da última quarta, durante uma sessão do filme "Freddy x Jason", não havia mais que cem pessoas no cinema.
"Do jeito que o cinema está hoje, com só uma sala, infelizmente só podemos exibir um filme por vez", queixou-se Coltro.

Marrocos multiplex
O Marrocos, que fechou as portas em 1997, mas conserva boa parte de suas características originais, é alvo de negociação entre a imobiliária Savoy, sua atual proprietária, e o grupo americano Cinemark, um dos líderes mundiais no setor. Hoje, o espaço, onde se destaca uma belíssima fonte em forma de estrela no hall de entrada, é alugado para festas.
O projeto da Cinemark é fazer um complexo com seis salas de exibição. "Mas uma delas manteria o glamour e o porte da sala que lá existia. O átrio é uma das coisas que seriam mantidas", afirmou o presidente da empresa do Brasil, Valmir Fernandes.
Segundo ele, os donos já têm um "comprometimento" com a sua empresa para fechar o negócio -um arrendamento do espaço por 20 anos. A Folha tentou por dois dias falar com a Savoy, mas as pessoas indicadas para tratar do assunto não responderam aos recados.
Fernandes informou que a Cinemark procura parceiros para viabilizar o plano e busca incluí-lo em leis de incentivo à cultura. "Esperamos poder anunciar o projeto no ano que vem. Seria fantástico dar esse presente a São Paulo nos 450 anos."
Há um empecilho às ambições da Playarte e da Cinemark: tanto o Marabá quanto o Marrocos têm seus prédios tombados pelo patrimônio histórico, o que significa que alterações têm de ser autorizadas pelos órgãos responsáveis.
"A reforma seria interna. Não vamos mudar a fachada, então não terá problema", diz Coltro. Fernandes afirma que o projeto da Cinemark para o Marrocos segue a mesma linha.

Luxo e elegância
Inaugurado em 1952, o Marrocos foi o cinema mais luxuoso da América do Sul. Era o coroamento da tendência, iniciada alguns anos antes, de transformar as salas em luxuosos templos do entretenimento. Também naquela época já se seguia um modelo americano: para diversificar os investimentos e impulsionar seu negócio, os grandes estúdios construíam eles próprios as salas, que tinham a imponência como característica comum.
Em 1954, ano do quarto centenário de São Paulo, a grandiosidade do Marrocos, construído em estilo mourisco, serviu de palco para o Festival Internacional de Cinema. Astros de Hollywood como Errol Flyn, Jefrey Hunter e o diretor Erich von Stroheim estiveram por lá.
Na era da Cinelândia, o espaço dedicado à platéia era enorme, as telas idem, os cinemas tinham frisas, salas de espera com lustres, espelhos finos e mármore.
O Paissandu tinha um elevador que levava os passageiros ao "pullman". O ícone da mania de grandeza foi o Universo, inaugurado em 1939 no Brás, outro pólo de salas de cinema. Projetado pelo arquiteto Rino Levi, tinha capacidade para 4.324 pessoas.
O República, na praça homônima, gabou-se de, em 1955, inaugurar a maior tela de cinema do mundo, com incríveis 250 metros quadrados.
Os investimentos eram correspondidos. Na década de 50, era vendida na cidade de São Paulo uma média de 50 milhões de ingressos por ano. Em 1956 foram vendidos 58,7 milhões, quando a cidade tinha cerca de 3 milhões de habitantes -uma média de quase 20 ingressos por paulistano.
Hoje, a venda anual de bilhetes em todo o Brasil gira em torno de 80 milhões, menos de 0,5 ingresso por habitante.
Para frequentar os luxuosos ambientes, os cinéfilos eram obrigados a se vestir com pompa.
"Não sei se posso chamar isso de bons tempos. Ter que entrar de gravata no cinema é ridículo", afirma o diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Leon Cakoff, 55, que foi barrado no Metro num domingo de sua infância, porque seu irmão estava sem gravata.
Cakoff, que é sócio de salas de cinema na cidade, tentou arrendar o Marrocos para reformar a sala, mantendo o desenho original, e utilizá-la em eventos relacionados a cinema. Esbarrou no preço pedido pelos proprietários.
Ele avalia que o cinema da Conselheiro Crispiniano é o único que poderia reviver a época da Cinelândia. "O resto não tem mais glamour, está tudo arrasado. Quem acabou com o centro foram as elites. Sucatearam tudo e deixaram o bagaço para os pobres. Elas que se virem para consertar."

Broadway
Há tentativas isoladas para, se não recuperar, ao menos reviver minimamente o que foi a Cinelândia paulistana, valorizando os cinemas de rua do centro. Nenhuma parte do Estado.
Uma delas é do engenheiro Cláudio de Sena, do Instituto Mais São Paulo. Batizado de "Broadway Paulistana", o projeto consiste em criar um pólo de lazer e gastronomia em torno do largo do Paissandu, aproveitando a estrutura das várias salas de cinema que restam na região.
A idéia foi apresentada à administração anterior da Secretaria Estadual de Cultura e engavetada pela atual. O "Broadway Paulistana" é bem acolhido pela Associação Viva o Centro.
Em outubro, foi aprovado em primeira votação na Câmara um projeto de lei do vereador Nabil Bonduki (PT) que isenta cinemas de rua e de galerias do pagamento de IPTU e de parte do ISS.
O pesquisador Inimá Simões, autor do livro "Salas de Cinema em São Paulo", de 1990, obra de referência no assunto, é cru ao analisar as iniciativas. "A Cinelândia não existe mais. Tentar recuperar é bobagem. Já passou. É como uma velha máquina Remington. Vai ficar guardada na memória, não dá para recuperar."


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