|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"Vestido de Noiva"
Adaptação perde espírito ambíguo do texto original
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
"Um morto é bom
porque a gente deixa num lugar e
quando volta ele está na mesma
posição", exclama a personagem Alaíde em um diálogo do
texto da peça "Vestido de Noiva", de Nelson Rodrigues. A fala
premonitória assombra quase
todas as tentativas de trasladar
o texto vivo de Nelson para o cinema, como se ele fosse um autor morto que não tivesse possibilidades de cobrar o custo alto da tarefa.
Quase um gênero à parte no
cinema brasileiro, as adaptações de textos do cronista, dramaturgo, jornalista e romancista já deram origem a adaptações desde os anos 50. Mas ninguém teve a ousadia de se aproximar de "Vestido de Noiva",
texto fundador da dramaturgia
rodrigueana e marco mítico do
teatro brasileiro.
Coube a Joffre Rodrigues, filho de Nelson, a tarefa. Como
cineasta estreante, Joffre tenta
se safar das armadilhas dramatúrgicas do texto do pai. Mas o
respeito e a ênfase na fidelidade
ao original cobram seu preço na
forma de um cinema pouco estimulante.
Um dos pontos da magnitude
do texto teatral de "Vestido" estava na distribuição dos tempos. A semi-morta Alaíde de um plano se embaralha com as
memórias da personagem e
com seus delírios. Com essa sobreposição, Nelson não apenas
conseguiu tecer um conjunto
de proposições modernas do
ponto de vista da encenação,
como expressar sua visão moral da subjetividade, até certo
ponto à margem da vulgata psicanalítica, feita da mistura de
desejo e morte, de paixão e vingança, sem redenção alguma
possível no horizonte.
Com o arsenal técnico e narrativo do cinema, Joffre mantém a letra, mas perde o espírito do pai. Inteligentemente, sua
adaptação reitera a origem teatral do texto por meio de uma
representação que foge, na medida do possível, do naturalismo. Mas esbarra nos recursos do drama cinematográfico tradicional -o uso do flashback, a
montagem paralela- para
emular, sem conseguir, aquilo
que é propriamente moderno e
inventivo na estrutura do texto.
Por fim, o trágico travestido
de melodrama sob a forma de
folhetim, forças típicas do universo de Nelson, perde suas
ambigüidades e seu valor simbólico ao se metamorfosear numa encenação calcada em closes excessivos e próxima da psicologia rasa de telenovela.
Diante dessa experiência, ecoa
outro diálogo da Alaíde criada
por Nelson: "Nem que eu morra, deixarei você em paz!".
VESTIDO DE NOIVA
Direção: Joffre Rodrigues
Produção: Brasil, 2006
Com: Simone Spoladore, Letícia Sabatella e Marília Pêra
Quando: em cartaz a partir de amanhã
no Frei Caneca Arteplex e circuito
Texto Anterior: "Surto" de peças e filme celebram Nelson Próximo Texto: Encontro discute o teatro de grupo Índice
|