São Paulo, quinta-feira, 16 de novembro de 2006

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Crítica/"Vestido de Noiva"

Adaptação perde espírito ambíguo do texto original

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

"Um morto é bom porque a gente deixa num lugar e quando volta ele está na mesma posição", exclama a personagem Alaíde em um diálogo do texto da peça "Vestido de Noiva", de Nelson Rodrigues. A fala premonitória assombra quase todas as tentativas de trasladar o texto vivo de Nelson para o cinema, como se ele fosse um autor morto que não tivesse possibilidades de cobrar o custo alto da tarefa.
Quase um gênero à parte no cinema brasileiro, as adaptações de textos do cronista, dramaturgo, jornalista e romancista já deram origem a adaptações desde os anos 50. Mas ninguém teve a ousadia de se aproximar de "Vestido de Noiva", texto fundador da dramaturgia rodrigueana e marco mítico do teatro brasileiro.
Coube a Joffre Rodrigues, filho de Nelson, a tarefa. Como cineasta estreante, Joffre tenta se safar das armadilhas dramatúrgicas do texto do pai. Mas o respeito e a ênfase na fidelidade ao original cobram seu preço na forma de um cinema pouco estimulante.
Um dos pontos da magnitude do texto teatral de "Vestido" estava na distribuição dos tempos. A semi-morta Alaíde de um plano se embaralha com as memórias da personagem e com seus delírios. Com essa sobreposição, Nelson não apenas conseguiu tecer um conjunto de proposições modernas do ponto de vista da encenação, como expressar sua visão moral da subjetividade, até certo ponto à margem da vulgata psicanalítica, feita da mistura de desejo e morte, de paixão e vingança, sem redenção alguma possível no horizonte.
Com o arsenal técnico e narrativo do cinema, Joffre mantém a letra, mas perde o espírito do pai. Inteligentemente, sua adaptação reitera a origem teatral do texto por meio de uma representação que foge, na medida do possível, do naturalismo. Mas esbarra nos recursos do drama cinematográfico tradicional -o uso do flashback, a montagem paralela- para emular, sem conseguir, aquilo que é propriamente moderno e inventivo na estrutura do texto.
Por fim, o trágico travestido de melodrama sob a forma de folhetim, forças típicas do universo de Nelson, perde suas ambigüidades e seu valor simbólico ao se metamorfosear numa encenação calcada em closes excessivos e próxima da psicologia rasa de telenovela. Diante dessa experiência, ecoa outro diálogo da Alaíde criada por Nelson: "Nem que eu morra, deixarei você em paz!".


VESTIDO DE NOIVA   
Direção:
Joffre Rodrigues
Produção: Brasil, 2006
Com: Simone Spoladore, Letícia Sabatella e Marília Pêra
Quando: em cartaz a partir de amanhã no Frei Caneca Arteplex e circuito


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