São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/DVD/"Arca Russa"

Sem cortes, Sokúrov encena a história russa

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

O espectador leigo de cinema fica a ver navios quando críticos e teóricos se lançam a elogiar um filme elencando as virtudes com base no uso de tantos planos-seqüências. O termo é técnico e, portanto, jargão, inadequado, segundo regras, para ser usado em textos jornalísticos. Mas como explicitar as qualidades de "Arca Russa", filme realizado numa única tomada de 97 minutos, ou seja, num único plano-seqüência, sem explicar do que se trata e para que serve? Sejamos didáticos, portanto.
Um filme, como um livro, uma novela ou uma história em quadrinhos, é feito de centenas de pontos de vista, perspectivas sobre ações, personagens e objetos. A cada um desses recortes de filmagem se dá o nome de "plano". No processo seguinte, a montagem, o editor se encarrega de colocar ordem e ritmo nesses pedaços, construindo seqüências e, com a sucessão delas, o filme que vemos. Nessas operações, trata-se portanto de reinventar a realidade, primeiro por meio da encenação nas filmagens, depois colocando certa ordem que nos dá impressão de realidade.
Contra esta "realidade", alguns cineastas começaram a rodar cenas em planos longos, sem cortes, num modo, segundo críticos e teóricos importantes, de se aproximar ao máximo da realidade (supostamente mais "real" do que aquela outra). Sem cortes, acreditava-se, não há manipulação daquilo que se vê. Ou, mais importante, mantém-se a unidade de espaço e de tempo, proporcionando ao espectador acompanhar uma ação em sua integridade e, de quebra, em sua verdade.
Ora, o projeto do diretor russo Aleksandr Sokúrov em "Arca Russa" foi levar ao limite as tentativas anteriores de realizar um filme inteiro sem cortes, tecnicamente impossível antes do advento da câmera digital. Mas, ao contrário de seguir o culto do fetichismo realista, o plano-seqüência que constitui "Arca Russa" transmite outras significações que não o do culto da veracidade.
A longa tomada foi feita nos extensos salões e corredores do Museu Hermitage, que ocupa um majestoso palácio imperial em São Petersburgo. Como proeza técnica, a ambição de Sokúrov e equipe não se esgota no virtuosismo. Trata-se de usar a fluidez (trazida pelo movimento contínuo da imagem) como modo de encenar a história do país, interpretando-a.
Desse modo, passado e presente se interpenetram na imagem, dando-nos a ver a história como um processo contínuo que avança "sem cortes". Ao contrário, continua, se reproduz, reencontra-se por meio de um fluxo no qual nada se perde, tudo se transforma.


ARCA RUSSA
Direção: Aleksandr Sokúrov
Distribuidora: Versátil Home Vídeo
Quanto: R$ 37, em média
Classificação: não indicado a menores de 14 anos
Avaliação: ótimo



Texto Anterior: Isto é Saramago
Próximo Texto: Novelas da semana
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.