|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/DVD/"Arca Russa"
Sem cortes, Sokúrov encena a história russa
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
O espectador leigo de cinema fica a ver navios
quando críticos e teóricos se lançam a elogiar um filme elencando as virtudes com
base no uso de tantos planos-seqüências. O termo é técnico
e, portanto, jargão, inadequado,
segundo regras, para ser usado
em textos jornalísticos. Mas como explicitar as qualidades de
"Arca Russa", filme realizado
numa única tomada de 97 minutos, ou seja, num único plano-seqüência, sem explicar do
que se trata e para que serve?
Sejamos didáticos, portanto.
Um filme, como um livro,
uma novela ou uma história em
quadrinhos, é feito de centenas
de pontos de vista, perspectivas
sobre ações, personagens e objetos. A cada um desses recortes de filmagem se dá o nome
de "plano". No processo seguinte, a montagem, o editor se
encarrega de colocar ordem e
ritmo nesses pedaços, construindo seqüências e, com a sucessão delas, o filme que vemos.
Nessas operações, trata-se
portanto de reinventar a realidade, primeiro por meio da encenação nas filmagens, depois
colocando certa ordem que nos
dá impressão de realidade.
Contra esta "realidade", alguns cineastas começaram a
rodar cenas em planos longos,
sem cortes, num modo, segundo críticos e teóricos importantes, de se aproximar ao máximo
da realidade (supostamente
mais "real" do que aquela outra). Sem cortes, acreditava-se,
não há manipulação daquilo
que se vê. Ou, mais importante,
mantém-se a unidade de espaço e de tempo, proporcionando
ao espectador acompanhar
uma ação em sua integridade e,
de quebra, em sua verdade.
Ora, o projeto do diretor russo Aleksandr Sokúrov em "Arca
Russa" foi levar ao limite as
tentativas anteriores de realizar um filme inteiro sem cortes, tecnicamente impossível
antes do advento da câmera digital. Mas, ao contrário de seguir o culto do fetichismo realista, o plano-seqüência que
constitui "Arca Russa" transmite outras significações que
não o do culto da veracidade.
A longa tomada foi feita nos
extensos salões e corredores do
Museu Hermitage, que ocupa
um majestoso palácio imperial
em São Petersburgo. Como
proeza técnica, a ambição de
Sokúrov e equipe não se esgota
no virtuosismo. Trata-se de
usar a fluidez (trazida pelo movimento contínuo da imagem)
como modo de encenar a história do país, interpretando-a.
Desse modo, passado e presente se interpenetram na imagem, dando-nos a ver a história
como um processo contínuo
que avança "sem cortes". Ao
contrário, continua, se reproduz, reencontra-se por meio de
um fluxo no qual nada se perde,
tudo se transforma.
ARCA RUSSA
Direção: Aleksandr Sokúrov
Distribuidora: Versátil Home Vídeo
Quanto: R$ 37, em média
Classificação: não indicado a menores
de 14 anos
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Isto é Saramago Próximo Texto: Novelas da semana Índice
|