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MANUEL DA COSTA PINTO
Horto de estrabuleguices
Dois autores têm capacidade infernal de reinventar a linguagem literária a partir de escombros do vernáculo
EM "O Mamaluco Voador", de
Luiz Roberto Guedes, o padre
Manuel da Nóbrega escreve a
um colega de Goa, contando as desventuras de um jesuíta mestiço que,
como "servo de Sathanaz", empenha-se em voar na "machina volatrix" concebida por herege luterano.
Em "Catrâmbias!", de Evandro
Affonso Ferreira, a protagonista é
uma "velhota zuruó bilontra" que
repassa suas lembranças enquanto
come "jabuticabas mnemônicas" na
"cacimba anômala", na "Stultifera
Navis", no "horto de estrabuleguices" -ou, mais simplesmente, no
manicômio. Em comum entre os
dois autores, uma capacidade infernal de reinventar a linguagem literária a partir de escombros do vernáculo. Entretanto, são planos diferentes de pesquisa e criação.
Guedes escreve de cabo a rabo
num português supostamente quinhentista, no qual há espaço para
uma etimologia macarrônica que
reforça o efeito paródico dessa novela sobre os desastres da catequese:
"Vejo ho gentio christianizado muy
escandalizado dos christãos (....) e
hos mais perdem sua ynclinação naturalmente alegre, quedando-sse todos muy "ajururu" -palavra brasil
que senefica malencólico, desconsolado".
Ferreira reedita a prática, presente em livros anteriores, de exumar
palavras em desuso e colocá-las na
boca de personagens que, assim, se
transformam em mortos-vivos entoando uma ladainha monomaníaca, cheia de interjeições (como a do
título), adjetivos vetustos e referências ocultas a filósofos e escritores.
Ambos correriam o risco de cair
num virtuosismo vazio, não houvesse razão para essas experimentações. Em Guedes, o anacronismo
lingüístico serve de espelho para um
outro anacronismo: o mito positivo
da miscigenação étnica brasileira, da
qual o mamaluco é a caricatura.
Já Ferreira introduz o problema
na própria narrativa, retomando do
livro "Zaratempô!" o procedimento
de citar dois professores da Unicamp (de fato existentes) que não
conseguem ir além da análise estilística. Fazendo-se de ventríloquo de
um deles, o narrador de "Catrâmbias!" define seu livro como "esforço
de construção e experiência de uma
"ars moriendi", de uma arte de morrer" que, "se não serve para vencer a
morte, basta para saber perdê-la
com coragem, entregando-se destemidamente a seus afetos".
Qualquer leitor razoável apreciará
aqui o humor involuntário de uma
crítica encanecida, pecorina -que,
buscando sentido edificante nessa
parafernália textual, recorre a um
latinório "kitsch" ridicularizado pelo próprio livro. Na verdade, "Catrâmbias!" arrasta questões existenciais e memórias sentimentais, leitores, críticos e a própria literatura
no turbilhão desse diálogo de alienados, tudo corrompendo com seu riso
nervoso e sua língua esquizofrênica.
O MAMALUCO VOADOR
Autor: Luiz Roberto Guedes
Editora: Travessa dos Editores
Quanto: R$ 25 (144 págs.)
CATRÂMBIAS!
Autor: Evandro Affonso Ferreira
Editora: 34
Quanto: R$ 25 (80 págs.)
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