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"O que eu sinto falta hoje em dia é de classe", diz ator
Aos 70 anos, Jack Nicholson interpreta um paciente terminal de câncer e afirma ser difícil achar em roteiros um componente sexual para personagens mais velhos
MARCO AURÉLIO CANÔNICO
ENVIADO ESPECIAL A LOS ANGELES
O clima no corredor do hotel
onde, no último domingo, uma
dúzia de repórteres esperava
sua vez para entrevistar Jack
Nicholson era de apreensão,
para não dizer terror.
Não apenas porque, sentado
no quarto, fumando cigarros
em cadeia e beliscando pedaços
de melancia, estaria um dos
maiores atores da história do
cinema, mas principalmente
porque, no dia anterior, durante uma entrevista coletiva, Nicholson havia arrasado um jornalista por causa de uma pergunta de que não gostou.
"O que resta para interpretar
depois de fazerem dois velhos
moribundos?" foi a questão de
um jovem repórter à dupla Nicholson e Morgan Freeman,
que estava ali para falar de seus
papéis em "Antes de Partir",
com estréia prevista no Brasil
para 15 de fevereiro.
A cara de desgosto de Nicholson, afundado na cadeira e escondido atrás de seus óculos escuros, foi instantânea e provocou risadas da platéia. "Um serial killer que mata as pessoas
por causa de perguntas idiotas", respondeu o ator.
À grosseria acrescentou um
"ho, ho, ho" sinistro e completou dizendo que não era de
"afagar a imprensa estrangeira
para ganhar elogios".
"Tira essa merda de boné",
prosseguiu, agora já convicto
em sua atuação. "Está com medo?", finalizou, instalando um
clima de "meu Deus, baixou o
"Iluminado'" na sala.
Depois desse começo, seria
difícil a coisa ficar pior (e, realmente, não ficou; Nicholson estava mau humorado, mas até se
desculparia, no meio de outra
pergunta, pelo ataque inicial).
De qualquer modo, estava criada a expectativa para entrevistas tensas no dia seguinte, como a que a Folha faria com ele.
As esperanças de não ser atacado à base de sapatadas (como
o personagem de Leonardo DiCaprio em "Os Infiltrados") residiam em uma frase da estrela:
"Com meus óculos de sol, sou
Jack Nicholson. Sem eles, sou
um gordo de 70 anos".
Para alívio do repórter, o homem que recebeu a Folha
-além de uma jornalista argentina- estava sem óculos.
Era o gordo de 70 anos (completados em 22 de abril), com
seu característico sorriso do
gato de Alice. Estava cansado
("Não ajudou ficar acordado
até as 5h assistindo a uma luta
de boxe", justifica-se), mas
bem humorado e bem falante
-consumiu os 20 minutos da
conversa respondendo a apenas seis perguntas.
Na conversa, cujos principais
trechos estão abaixo, deu alfinetadas no novo Coringa, falou
sobre suas ligações com a nouvelle vague, sua amizade com o
diretor Hector Babenco e seu
projeto de adaptar Philip Roth.
NOVO CORINGA
Adoraria fazer o Coringa de
novo [em "The Dark Knight",
que estréia em 2008], mas não
fiquei furioso por não ter sido
convidado [como havia dito à
MTV]. Só digo essas coisas
quando estou fingindo ser uma
diva. Não temo ninguém que
interprete um papel após eu
tê-lo feito.
VIAGEM AO RIO
Já estive no Rio, mas, como o
pessoal de lá diz, todos os visitantes falam sobre o quanto
amam a cidade, mas não voltam
uma segunda vez [ri, com a jornalista argentina]. Mas é claro
que eu adoraria voltar ao Rio,
foi uma viagem fantástica. E
sempre quis ir a Buenos Aires
também, nas fotos você vê quão
chique era nos anos 30 e 40.
Ainda não fui lá, está na minha
"lista de coisas para fazer antes
de morrer" ["bucket list", título
original de "Antes de Partir"].
MEU AMIGO BABENCO
Hector é fabuloso, quando
me perguntam sobre os filmes
de que gosto e que acho que não
foram devidamente reconhecidos, "Ironweed" é sempre o primeiro que cito, ele fez um grande filme. Hector é uma dessas pessoas que podem ser muito
divertidas e extremamente sérias, adoro isso nele. Sei muito
mais sobre ele do que sobre outras pessoas com quem trabalhei e que moram em outros lugares. É um amigo querido. Se o entrevistarem, perguntem a
história sobre o irmão dele [veja texto na outra página]. Ele
vai querer me matar e matar
vocês, mas vai contar.
NOUVELLE VAGUE
Levei meus filmes proibidos
[como "Viagem ao Mundo da
Alucinação", 1967, com roteiro
seu] para Paris, na verdade os
contrabandeei e, na primeira
exibição, estava Godard que,
por acaso, gostou dos filmes.
Em minha primeira temporada
na Europa, sem um tostão, ele
me abrigou sob sua asa e, no fim
da jornada, no festival de Pesaro, na Itália, eu estava sentado
com a delegação da "Cahiers du
Cinéma" discutindo as mais variadas idéias sobre filmes. Conheci Bernardo [Bertolucci] lá,
éramos garotos dedicados, ficamos acordados até as 4h por
causa de uma palestra com Pasolini e o reitor da Sourbonne
discutindo qual era a unidade
básica de linguagem na sintaxe
do cinema, se a tomada ou seu
conteúdo.
Antes de chegar ao festival,
Godard havia feito a declaração
de que "um filme deve ter começo, meio e fim, não necessariamente nessa ordem". Esse
tipo de declaração existe porque é estimulante. Roubei muito da nouvelle vague para "Antes de Partir".
Adoro os filmes,
não só do movimento mas dos
teóricos da época, Kurosawa,
Antonioni, posso nomear 15
grandes diretores italianos trabalhando naquela época.
CINÉFILO
Hoje em dia não vemos os filmes estrangeiros aqui, eles não
os distribuem como costumavam. Antes, víamos uma obra-prima por semana, foi assim
por 14 anos. Bergman, Kurosawa, De Sica, Pasolini, Bertolucci, Truffaut, Resnais, cada semana era alguém. Não sabíamos, mas era a melhor educação possível. Além disso, eles
adoravam os filmes americanos
tanto quanto, Huston, Ford,
Hawks. Essa é a parte boa de
pertencer à indústria cinematográfica, não gostamos de admitir, mas somos muito sentimentais sobre as tradições.
Ainda assisto aos filmes como cinéfilo, mas a indústria
mudou, foi tomada por conglomerados. Um filme que faz, digamos, US$ 10 milhões, não significa nada porque agora se lida
com centenas de milhões. Uma
empresa de filmes é, de certo
modo, só um departamento de
organizações maiores, mesmo
para as pessoas que assistem
aos filmes a sensação de sucesso fica distorcida por esses parâmetros, é difícil encaixar cinema de autor nesse conceito.
FALTA DE CLASSE
O que eu sinto falta hoje em
dia é de classe, essa era uma palavra que se ouvia muito antes,
não apenas sobre os filmes.
"Aquele cavalo tinha classe",
"aquele lutador tinha classe",
"aquele era um pintor de classe". Gostaria de ouvir mais isso,
é algo que me deixa nostálgico.
Pelo modo como eles a usavam,
eu sabia exatamente o que queriam dizer: sem truques, sem
tolerar estupidez, sem comprar
afeições, sem escolher o caminho fácil, sem fazer o que eu faço, ficar se promovendo. Sinto
falta dessa palavra no repertório da nossa indústria, é quase
embaraçosa para algumas pessoas, acham que é ingenuidade
se preocupar com esse tipo de
coisa. A influência dos conglomerados no mundo é a última
instância, todos os outros valores são desprezados, e isso não
é bom para nós.
PROJETOS
Eu venho querendo reler "O
Teatro de Sabbath", de [Philip]
Roth. Li todo o Roth que caiu
nas minhas mãos enquanto fazia "As Confissões de Schmidt"
[2002], e esse é um projeto. A
coisa mais difícil de achar, tanto na literatura quanto em roteiros, é um componente sexual para um personagem mais velho. O filme que Nicole [Kidman] e Anthony Hopkins fizeram ["Revelação", baseado em
"A Marca Humana", de Roth]
tinha esse componente, não tenho certeza sobre "O Teatro de
Sabbath", mas acho que tem, o
personagem tem uma relação
louca com uma húngara. Há
também biografias que as pessoas vivem dizendo que deveriam ser feitas, Tesla, Napoleão, sobre quem eu preferiria dirigir um filme em vez de
atuar, porque estou muito velho, segundo dizem.
O repórter MARCO AURÉLIO CANÔNICO viajou
a convite da Warner Bros.
NA INTERNET - Ouça trechos da entrevista de Jack Nicholson no blog
www.folha.com.br/ilustradanocinema
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