São Paulo, terça-feira, 16 de dezembro de 2008

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o amigo italiano

Bertolucci é homenageado em ciclo de filmes no CCBB; em depoimento, fala sobre influência que teve do cinema novo

Divulgação
O cineasta, que ganha a mostra 'Estratégia do Sonho - O Primeiro Cinema de Bertolucci'

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

As frases célebres de um dos clássicos de Glauber Rocha são lidas com forte sotaque italiano por um homem de expressão cansada: "Se entregue, Corisco. O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão".
Ao terminar de declamá-las, ele ergue os olhos do papel onde as anotara e abre um sorriso para a câmera.
"São as últimas palavras que devo ter pronunciado mal em português, da música que acompanha com muita, muita, muita comoção, comoção extremada, o final de "Deus e o Diabo na Terra do Sol'", diz. "Ela ficou gravada em mim como um som, um som da minha relação com o Brasil."
Durante os quatro minutos seguintes, Bernardo Bertolucci, 68, falará sobre os amigos brasileiros e pedirá desculpas por não vir ao país para a abertura da retrospectiva "Estratégia do Sonho - O Primeiro Cinema de Bertolucci", que teve início no Rio no último dia 2 e chega a São Paulo amanhã, no CCBB, até o próximo dia 4.
O breve e afetuoso depoimento será exibido antes de todas as sessões. Os organizadores convidaram o cineasta, mas ele se submeteu a uma cirurgia na coluna e enfrenta lenta recuperação. Não tem viajado e teria inclusive adiado o início das filmagens de seu próximo filme, a ser produzido pelo inglês Jeremy Thomas.

Primeiro e segundo
O "segundo cinema" de Bertolucci, por sinal, passa entre outros aspectos pela parceria com Thomas, que produziu cinco de seus últimos seis longas: "O Último Imperador" (1987), "O Céu que nos Protege" (1990), "O Pequeno Buda" (1993), "Beleza Roubada" (1996) e "Os Sonhadores" (2003). Escapou "Assédio" (1998), produzido pelo italiano Massimo Cortesi.
Já o "primeiro cinema", homenageado pela retrospectiva, vai de "A Morte" (1962), cujas filmagens começaram quando o cineasta tinha 21 anos, até " La Luna" (1979). São nove longas (oito de ficção), um documentário de curta-metragem e um episódio do longa "Amor e Raiva" (1969).
"A fruição dos filmes emblemáticos de Bertolucci no Brasil é muito diluída e acontece atualmente mais pela televisão por assinatura, cineclubes, cinefilia via DVD e pirataria na internet", observa o curador da retrospectiva, Joel Pizzini. "Dos 12 longas que Bertolucci dirigiu entre 1962 e 1981, apenas três foram lançados no circuito exibidor, e um, "O Último Tango em Paris", de 1972, proibido durante oito anos."
Pizzini afirma se identificar mais com o "primeiro Bertolucci" por diversas razões:
"O modo de produção adotado, a liberdade como ele filmava ou podia filmar, a pulsão onírica e telúrica, o uso fluido e sensual da câmera, a intertextualidade, a inquietação política, o amor despudorado aos personagens".
"Enfim, um cinema lírico que nos diz muito e desperta uma vontade de arte para compartirmos sonhos afins de olhos abertos", define. Por outro lado, o "segundo Bertolucci", de "maior evidência internacional", seria inacessível entre nós como "modelo de cinema".
O diálogo entre cineastas italianos e brasileiros, sobretudo nos anos 60, é iluminado pela retrospectiva.

Cinema novo
No depoimento, Bertolucci lembra a amizade com Glauber, Gustavo Dahl, Paulo César Saraceni e Cacá Diegues, fala de Caetano Veloso e de Chico Buarque, e diz que teve "a alegria de conhecer Vinicius de Moraes" na casa de Gianni Amico (1933-1990), o principal responsável pela ponte entre realizadores dos dois países. "Os brasileiros, como amigos e como inspiração, como sentinelas, em toda a década de 60, que foi explosiva no mundo todo, tiveram uma grande força", diz Bertolucci.
"Era o Cinema Novo. Eu gostaria que os muitos jovens que estudam cinema hoje soubessem do que estou falando."
Pizzini observa que, a exemplo de Glauber, "Bertolucci sempre incomodou a direita e a própria esquerda com filmes libertários ligados à terra, sensíveis às perversões humanas e que problematizam a política pelo viés do indivíduo, longe dos esquematismos".
A diferença entre ambos, afirma, é que Glauber "se retirou de cena antes da cooptação dos autores independentes pelos grandes estúdios", enquanto Bertolucci "seguiu enfrentando os tubarões da indústria e criando uma obra pessoal nos vãos do sistema, investindo nas metáforas e incorporando a psicanálise para exorcizar os fantasmas e construir sua requintada gramática visual".


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