São Paulo, segunda-feira, 17 de janeiro de 2005

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NELSON ASCHER

Tsunamis

A escala Richter é uma fórmula que determina a intensidade de terremotos a partir da amplitude das ondas registradas pelos sismógrafos. Cada grau de diferença nela indica uma devastação substancialmente superior. Um terremoto que alcance sete nessa escala é mil vezes mais potente do que um que registre cinco, e um tremor de nível nove, como o que, em 26 de dezembro, provocou os tsunamis no oceano Índico, é mil vezes mais intenso do que aquele.
É possível comparar a energia liberada por um fenômeno assim à dos explosivos. O nível nove equivale à detonação simultânea de 32 bilhões de toneladas de TNT, ou seja, a uma explosão de 32 gigatons. A potência da bomba atômica lançada em 6 de agosto de 1945 sobre Hiroshima era de 12,5 quilotons. Seres humanos que resolvessem reproduzir a recente catástrofe precisariam de 2,5 milhões de bombas iguais ou, se usassem artefatos mais modernos (como o recordista de 60 megatons testado pelos soviéticos em 1961), de 500 bombas de hidrogênio.
A de Hiroshima matou imediatamente 70 mil pessoas e seus efeitos colaterais, o dobro disso. O número de vítimas das ondas que atingiram litorais do sudeste e sul asiático à costa oriental da África anda em torno de 150 mil. Se bem que tal constatação não console quem perdeu família, casa ou aldeia, a natureza é cega e sua mira, deficiente, pois a energia envolvida, desde que adequadamente administrada, bastaria para exterminar várias vezes a humanidade inteira.
O epicentro do tremor se situava debaixo do mar, a 150 km do litoral de Aceh, Província no noroeste da Indonésia, um arquipélago com mais de 17 mil ilhas, cujas duas principais, Sumatra e Java, repousam sobre uma área de permanente instabilidade geológica. Foi ali que ocorreram muitas das piores erupções vulcânicas de todos os tempos. A de Krakatoa (de uns 200 megatons), em 26 de agosto de 1883, foi a primeira da região a se tornar, graças ao telégrafo, notícia internacional. Não obstante os 20 km cúbicos de cinzas que despejou na atmosfera e as ondas de até 40 m que levantou terem resultado em 36 mil mortes, houve hecatombes maiores na vizinhança.
Estima-se que a erupção do Tambora, em 1815, matou 100 mil pessoas e ejetou 150 km cúbicos de material que, se espalhando ao redor da Terra e bloqueando raios solares, foram responsáveis por um "ano sem verão". Outra explosão vulcânica no estreito de Sunda, em meados do século 6, afetando o clima na Europa e na África, prejudicou colheitas, facilitou pestilências e incentivou guerras. Mas, se desde que o Homo sapiens existe, sucedeu algo que se aproxima do Apocalipse, foi a erupção, 70-75 mil anos atrás, do monte Toba, em Sumatra. Cinqüenta vezes mais poderosa que a de Krakatoa, ela cobriu a Índia de cinzas e, desencadeando uma intensa era glacial de um milênio, ocasionou a extinção de incontáveis espécies e adiou a colonização dos demais continentes por nossos ancestrais africanos.
Antigamente, dado que os homens sempre exigem explicações, fenômenos semelhantes eram equacionados e transmitidos sob a forma de mitos. Antigamente? Nem tanto. Do Oriente Médio à Ásia não faltaram clérigos muçulmanos que atribuíssem os vagalhões de dezembro à cólera de Allah. Curiosamente, a nação que sofreu mais severamente seu impacto, a Indonésia, é majoritariamente islâmica e a Província de Aceh é o centro do fundamentalismo local. Por que Allah teria punido de tal modo seus seguidores? Por causa do desrespeito às suas leis e da presença de turistas infiéis que, além de se comportarem imoralmente, consomem bebidas alcoólicas.
Quem sabe isso explique por que países que, beneficiados pela alta nos preços do petróleo (Irã, Arábia Saudita etc.), malgrado não pouparem dinheiro para exportar sua fé, se mostraram tão sovinas quando chegou a hora de ajudar, não cristãos, hinduístas ou budistas, mas sim seus correligionários. O grosso do auxílio às vítimas veio dos Estados Unidos, Austrália, Japão, Cingapura e Europa. E foram americanos e australianos que primeiro mobilizaram seus recursos, resgatando, nos dias cruciais, quem ainda podia ser salvo.
Tamanha pressa, como era de esperar, desagradou aos partidários da ONU que, vendo nela a única fonte de legitimidade para qualquer ação internacional, desejam transformá-la no núcleo de um governo planetário. Um ex-membro da administração Blair no Reino Unido, Clare Short, que renunciara em protesto à Guerra do Iraque após havê-la endossado, declarou que, tomando com seus aliados a iniciativa de enviar navios, aviões e helicópteros para a zona de desastre, os Estados Unidos estavam tentando deslegitimar a organização. Esta, incidentalmente, vem sendo acusada de ter, no mínimo, fechado os olhos conforme Saddam Hussein embolsava US$ 20 bilhões destinados pelo programa Petróleo por Comida ao povo iraquiano.
Short, a rigor, tinha razão. A coalizão coordenada pelos EUA desmoralizou novamente uma instituição que já demonstrara, por meio da omissão, sua irrelevância nos Bálcãs, em Ruanda, no Iraque e continua a fazê-lo no Sudão e no Congo. Enquanto os militares americanos, australianos e outros transportavam remédios e alimentos, montavam hospitais de emergência e providenciavam água potável aos sobreviventes, os elegantes burocratas de carreira "onusianos", quando não estavam dando entrevistas à imprensa, reuniam-se para decidir a pauta da reunião seguinte. Se tais contrastes não foram muito noticiados ou comentados aqui, tailandeses e indonésios, cingaleses e indianos pelo menos sabem com quem poderão contar no caso de um novo cataclismo.


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