São Paulo, quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Cuba libre?

O embargo não é apenas inútil. É um pretexto para que o regime sobreviva. Morto ou vivo, Fidel é uma irrelevância

NÃO É fácil ser ditador. Platão dizia, na sua "República", que a infelicidade do tirano nasce de sua incapacidade em ser amado. O tirano vive no medo e o medo, como Stálin demonstrou com feroz eloqüência, convida a renovados atos de tirania.
Mas o tirano não vive apenas no medo. Sabe que, pela ordem natural das coisas, a vida não é eterna. E chegará um dia em que o corpo, habituado a mandar, será providencialmente mandado à cova. Na hora derradeira, do senhor ao escravo, todos valem precisamente o mesmo.
E Fidel? Fidel jaz moribundo numa cama de Havana. De vez em quando ainda aparece em foto de jornal, segurando outro jornal, só para mostrar ao mundo que ainda respira. Mas essas imagens de seqüestrado não impedem o mundo de conspirar em voz baixa. E depois de Fidel, o que será de Cuba?
A revista "Foreign Policy" resolveu investigar e convidou dois jornalistas para o debate. Do lado da acusação, o colunista Carlos Alberto Montaner. Do lado da defesa, o inevitável Ignacio Ramonet, diretor do "Le Monde Diplomatique". Começaram em diálogo. Terminaram em insulto. Gostei.
Montaner relembra o óbvio: em 1959, quando Fidel entrou em Havana, a idéia era liberdade, democracia, economia aberta e relações normais com os Estados Unidos. Meio século volvido, 2 milhões partiram para o exílio, houve milhares de execuções, milhares de prisioneiros políticos e, no momento em que escrevo, uns 300 continuam nas masmorras. Sem falar da pobreza endêmica. Sentença de Montaner: depois de Fidel, a mudança gloriosa. Como aconteceu com as "democracias populares" no leste da Europa depois da queda do muro de Berlim.
Ignacio Ramonet contrapõe. Começa por lembrar proezas de Cuba na saúde e na educação. Assegura, mentindo, que Cuba nunca matou extrajudicialmente (Montaner relembra o afundamento do barco "13 de Marzo" com 72 refugiados a bordo). E termina com evidência clara: Fidel saiu de cena há cinco meses e o regime segue intacto. Aliás, o muro caiu há 18 anos, Moscou deixou de mandar dinheiro e Cuba sobreviveu.
Os comentários de Ramonet não deveriam merecer comentário. Eles assentam na desumanidade típica do intelectual secular que, em nome de um ideal abstrato, justifica qualquer crime como necessário à causa.
Mas Ramonet tem parte da razão: o otimismo de Montaner, da administração americana e dos cubanos no exílio é um ato de fé que o presente não comprova.
Não falo apenas da transição evidente que já ocorreu sem sobressaltos. Falo do atual PC cubano no poder: uma realidade relativamente jovem e heterogênea, com apoio crucial da Venezuela e, pormenor fundamental, com um inimigo externo capaz de unir uma nação. O embargo não é apenas inútil. É um pretexto para que o regime sobreviva.
Entender o futuro de Cuba com os óculos habituais do mundo pós-perestroika é distorcer o essencial. Morto ou vivo, Fidel é uma irrelevância. A liberdade de Cuba será um caminho lento, incerto. E o fim do tirano não é razão para festejar.


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