São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 2009

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Sob fogo cerrado

"A Face da Guerra", que ganha edição brasileira, reúne textos sobre conflitos registrados em mais de 50 anos por Martha Gellhorn, ex-mulher de Hemingway e uma dos maiores correspondentes de guerra da história

David Rubinger-5.jun.67/Reuters/Divulgação/Governo de Israel
Israelenses prendem palestinos em Rafah (faixa de Gaza), na Guerra dos Seis Dias, 1967; Gellhorn cobriu o conflito

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Visitando a Cisjordânia e a faixa de Gaza, a jornalista americana Martha Gellhorn comentou que "deve-se chorar e ter pena dos mortos; nenhum deveria ser explorado para a propaganda". Detalhe: ela escreveu isso em 1967. O mundo, ou ao menos sua parte conhecida como Oriente Médio, parece sempre regredir.
Não poderia haver um lançamento mais oportuno que "A Face da Guerra", coletânea de textos daquela que foi um dos maiores correspondentes internacionais do século 20. O livro sai pela Objetiva na coleção Jornalismo de Guerra, com curadoria de Leão Serva e do jornalista da Folha Sérgio Dávila.
Seria possível dizer que Gellhorn (1908-1998) foi "a" mais notável correspondente de guerra do século 20. Mas seria sexismo. Na coragem e na qualidade dos escritos, ela não deixava nada a dever a ninguém. Os textos cobrem conflitos da Guerra Civil Espanhola (1936-39) à invasão americana do Panamá (1990).
Separados no tempo por meio século, têm em comum a empatia com as principais vítimas dos conflitos: civis e soldados forçados a lutar. "Escrevi ficção porque adoro, e o jornalismo por causa da curiosidade que [...] só termina com a morte. Embora eu há muito tenha perdido a fé inocente de que o jornalismo é uma luz orientadora, ainda acredito que ela é melhor que a escuridão total", escreveu ela.

Militante antifascista
Gellhorn começou por acaso na profissão. Judia e pacifista, virou militante antifascista por conta do nazismo, que apoiava o franquismo na guerra na Espanha. Foi para lá não para escrever, mas, com uma carta de apresentação da "Collier's", foi convencida a relatar o que via em Madri. A revista pediu mais. Sua descrição, de 1937, da morte de uma criança espanhola vale para qualquer época. "A senhora está no meio da praça quando ocorre a próxima explosão. O obus dispara um estilhaço de aço retorcido, afiado e incandescente, que acerta a garganta do menino. A velha senhora fica parada, [...] olhando o menino com um ar abobalhado, sem dizer nada."
Gellhorn não tinha os horários rígidos de um jornal; podia ir para onde quisesse e passar o tempo necessário. Cobriu a invasão soviética à Finlândia e esteve na guerra entre chineses e japoneses antes de os EUA entrarem no conflito, em 1941. Ironicamente, a partir daí teve mais problemas para trabalhar -ao contrário do então marido e também correspondente Ernest Hemingway (1899-1961). "Os oficiais de relações públicas do Exército americano, os patrões da imprensa americana, eram [...] dogmáticos que faziam objeção à presença de uma correspondente mulher junto às tropas", anotou ela na primeira edição do livro (1959).
Só em 1943 pôde cobrir a guerra na Europa -e o fez tão bem, ou melhor, que o marido. Hemingway era um garotão narcisista, figura central de vários de seus textos. Gellhorn era boa observadora. Dizia que, "para fins de higiene mental", desistira "de tentar pensar ou julgar" -embora deixasse clara, por exemplo, sua posição na Guerra dos Seis Dias (1967).
Crítica do envolvimento dos EUA no Vietnã, ela condenou as restrições que surgiram depois para o registro de conflitos, como na Guerra do Golfo (1990-91). Seria curioso saber o que pensaria das coberturas pós-11/9 -como o "encaixe" de jornalistas entre as tropas anglo-americanas que invadiram o Iraque (2003) ou as restrições que Israel faz hoje à imprensa.


A FACE DA GUERRA
Autora: Martha Gellhorn
Tradução: Paulo Andrade Lemos e Anna Luisa Araujo
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 45,90 (415 págs.)
Avaliação: ótimo



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