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"O MEDO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO"
Ideologia do extermínio atualiza antigas dicotomias
GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dizia a bela lábia barroca do
padre Antônio Vieira que o
medo entra pelo ouvir, que o órgão do medo é o ouvido. Neste livro que nasce clássico sobre antropologia urbana na fase do capitalismo videofinanceiro, a cientista social Vera Malaguti, carioca da
gema, apaixonada pela sua cidade
e humanista indignada diante da
miséria e da injustiça social, escreve com clarividência: "No limiar
entre o [século] 20 e o 21, o medo
não é só uma conseqüência deplorável da radicalização da ordem econômica, o medo é um
projeto estético, que entra pelos
olhos, pelos ouvidos e pelo coração".
A autora é uma intelectual corajosa e desreprimida que descende
da escola de Darcy Ribeiro e Joel
Rufino dos Santos, cujo inconformismo político se casa perfeitamente à objetividade da pesquisa,
trazendo não a minudência, o secundário, o superficial, mas a essência das coisas para a discussão
científica. Sua abordagem de perfil histórico vai do passado (Corte
Imperial) para o presente, com a
onda de pânico no Rio de Janeiro.
É esse imaginário o seu objeto
de estudo: a história do medo, a
degradação social e psíquica e os
discursos criminalistas reacionários, racistas, genocidas que colocam como panacéia a progressão
da pena. É a cabeça penal dos políticos e administradores numa
paisagem repleta de pivetes, camelôs, flanelinhas, mendigos, miseráveis, assaltantes, vadios, vagabundos, traficantes, malandros e
bandidos.
A ralé urbana engendra um discurso -do "Jornal Nacional" da
Globo aos computadores dos juristas- que vem se tornando cada vez mais hegemônico tanto na
direita quanto na esquerda: a criminalização dos pobres.
A culpa é do pobre. Estamos assistindo, movidos pelo sentimento muitas vezes manipulado pelo
medo, a um "videofasciocriminal" que condena o direito do povo brasileiro a existir.
"Ideologia do extermínio"
É, segundo Vera Malaguti, a
"ideologia do extermínio" que,
pasmem os leitores, é mais introjetada e alastrada na chamada era
neoliberal do que nos anos de ditadura. Disso resulta, na superestrutura jurídica e na polícia, a
crescente dogmatização da pena.
O fetichismo da penalização
"com a tortura como princípio, o
elogio da delação e a execução como espetáculo".
Nessa ideologia do extermínio,
que medra nas campanhas eleitorais, nas telenovelas e nos programas de auditório, reatualiza-se o
bestialógico que dicotomiza a civilização e o trópico, o asfalto e a
favela, além de pôr em uso a patologização da África. A origem de
tudo isso é o reflexo de uma ordem colonial e escravocrata, temerosa da insurreição da senzala
com quilombadas, zumbis e arrastões pelas praias, embora muitos desses arrastões praieiros sejam produzidos "made in TV", e
sob a mira cúmplice de políticos
espertalhões que demonizam e
teatralizam pragmaticamente o
caos, a desordem, a violência e a
baderna; enfim, o câncer do medo.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é
professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa
Amarela)
O Medo na Cidade do Rio de Janeiro
Autor: Vera Malaguti Batista
Editora: Revan
Quanto: R$ 30 (270 págs.)
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