São Paulo, terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

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"O MEDO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO"

Ideologia do extermínio atualiza antigas dicotomias

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dizia a bela lábia barroca do padre Antônio Vieira que o medo entra pelo ouvir, que o órgão do medo é o ouvido. Neste livro que nasce clássico sobre antropologia urbana na fase do capitalismo videofinanceiro, a cientista social Vera Malaguti, carioca da gema, apaixonada pela sua cidade e humanista indignada diante da miséria e da injustiça social, escreve com clarividência: "No limiar entre o [século] 20 e o 21, o medo não é só uma conseqüência deplorável da radicalização da ordem econômica, o medo é um projeto estético, que entra pelos olhos, pelos ouvidos e pelo coração".
A autora é uma intelectual corajosa e desreprimida que descende da escola de Darcy Ribeiro e Joel Rufino dos Santos, cujo inconformismo político se casa perfeitamente à objetividade da pesquisa, trazendo não a minudência, o secundário, o superficial, mas a essência das coisas para a discussão científica. Sua abordagem de perfil histórico vai do passado (Corte Imperial) para o presente, com a onda de pânico no Rio de Janeiro.
É esse imaginário o seu objeto de estudo: a história do medo, a degradação social e psíquica e os discursos criminalistas reacionários, racistas, genocidas que colocam como panacéia a progressão da pena. É a cabeça penal dos políticos e administradores numa paisagem repleta de pivetes, camelôs, flanelinhas, mendigos, miseráveis, assaltantes, vadios, vagabundos, traficantes, malandros e bandidos.
A ralé urbana engendra um discurso -do "Jornal Nacional" da Globo aos computadores dos juristas- que vem se tornando cada vez mais hegemônico tanto na direita quanto na esquerda: a criminalização dos pobres.
A culpa é do pobre. Estamos assistindo, movidos pelo sentimento muitas vezes manipulado pelo medo, a um "videofasciocriminal" que condena o direito do povo brasileiro a existir.

"Ideologia do extermínio"
É, segundo Vera Malaguti, a "ideologia do extermínio" que, pasmem os leitores, é mais introjetada e alastrada na chamada era neoliberal do que nos anos de ditadura. Disso resulta, na superestrutura jurídica e na polícia, a crescente dogmatização da pena. O fetichismo da penalização "com a tortura como princípio, o elogio da delação e a execução como espetáculo".
Nessa ideologia do extermínio, que medra nas campanhas eleitorais, nas telenovelas e nos programas de auditório, reatualiza-se o bestialógico que dicotomiza a civilização e o trópico, o asfalto e a favela, além de pôr em uso a patologização da África. A origem de tudo isso é o reflexo de uma ordem colonial e escravocrata, temerosa da insurreição da senzala com quilombadas, zumbis e arrastões pelas praias, embora muitos desses arrastões praieiros sejam produzidos "made in TV", e sob a mira cúmplice de políticos espertalhões que demonizam e teatralizam pragmaticamente o caos, a desordem, a violência e a baderna; enfim, o câncer do medo.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa Amarela)

O Medo na Cidade do Rio de Janeiro
    
Autor: Vera Malaguti Batista
Editora: Revan
Quanto: R$ 30 (270 págs.)


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