|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RÉPLICA
Uma piada de mau gosto
Em resposta a texto do colunista Nelson Ascher, o músico Arnaldo Antunes destaca a urgência da questão ambiental
ARNALDO ANTUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA
É DE derrubar o queixo o
artigo de Nelson Ascher
de 4 de fevereiro, nesta
Ilustrada, em que declara que
"o lobby mais poderoso e articulado é, sem dúvida, o dos verdes ou ecologistas", que estaria
impondo ao mundo inúmeras
restrições, baseado em "males
imaginários".
Tendo em conta as enormes
dificuldades para conseguir reduzir minimamente os efeitos
de uma situação planetária que
vem se revelando muito mais
alarmante do que até então todos supúnhamos, tal afirmação
do colunista parece uma piada
de mau gosto.
A urgência em se tratar da
questão ambiental vem sendo
comprovada por inúmeras pesquisas científicas e evidências
incontestáveis, a despeito das
já reportadas pressões que o
governo americano vem exercendo sobre seus cientistas para atenuarem, retardarem, alterarem ou excluírem suas conclusões sobre o meio ambiente
dos relatórios oficiais.
Nelson Ascher repete aqui a
ladainha do "não é bem assim",
que vem sendo usada com freqüência pelos representantes
dos interesses das indústrias
poluentes para tapar o sol com
a peneira e não alterar suas
condutas em relação ao meio
ambiente. Faz isso desde o título de seu texto ("Quente ou
frio?"), pondo em dúvida, não
só o aquecimento global, como
também a responsabilidade
humana sobre ele.
É claro que medidas ecológicas implicam diretamente reduções drásticas nos lucros
imediatos de determinados
grupos empresariais, diante
dos quais as reivindicações dos
ambientalistas (como reduções
nas emissões de CO2, tratamento adequado do lixo, descontaminação das águas, restrição ao
desmatamento das florestas)
ainda engatinham, contra muita resistência e pouca consciência.
Metáforas medonhas
Ao mesmo tempo, não é de
espantar a postura de Nelson
Ascher, para quem já vem
acompanhando, em doses semanais, sua campanha a favor
da desastrosa política externa
da administração Bush e de
seus métodos para combater o
terrorismo internacional.
Nos primeiros momentos da
invasão norte-americana no
Iraque, Ascher comemorou
com entusiasmo a suposta vitória (com metáforas medonhas
como as de bombas caindo como pizzas "delivery"), sem perceber o quanto não se tratava
de um termo, e sim do início de
um conflito armado que se estende até hoje, sem uma solução à vista.
Dessa visada, seu artigo parece fazer sentido, pois serve bem
ao que almeja a nova ordem
americana (marcada pela intolerância nas relações exteriores, assim como pela recusa em
aceitar as restrições internacionais para controle do aquecimento global), contra o que já
chamou, em outros artigos, de
"velha Europa".
Ainda, para Nelson Ascher,
os defensores do meio ambiente seriam responsáveis por uma
série de "proibições" que, "poucas décadas atrás, teriam parecido ridículas": "baniram os bifes", "eliminaram os transgênicos", "proscreveram os vôos internacionais", "tornaram proibitivo o uso de automóveis", "plastificaram as genitálias
alheias para limitar a produção
de bebês", "criminalizaram a
obesidade, o fumo etc.".
Um mínimo de sensatez basta para duvidar da maioria dessas colocações. O culto à forma
física e a proibição ao fumo têm
origem mais ligada a questões
de saúde pública e conservadorismo moral do que à defesa do
meio ambiente.
Por sua vez, o uso de preservativos -apesar de atualmente
ter mais relação direta com a
ameaça da Aids e de outras
doenças sexualmente transmissíveis do que com causas
ecológicas, como o controle de
natalidade- apresenta uma alternativa libertária e necessária, contra a qual o puritanismo
das forças neoconservadoras
(as mesmas que tentam substituir Darwin por Adão e Eva no
ensino primário) investe com a
defesa das relações monogâmicas e do sexo apenas com fins
de procriação.
Quanto às outras restrições,
parecem ilusórias ante a constatação da realidade cotidiana.
As ofertas para consumo de
carne aumentaram em quantidade e variedade nas últimas
décadas, e não parece preciso
lembrar aqui que parte da floresta amazônica vem sendo devastada para se tornar pasto. Os
preços das passagens para vôos
internacionais caíram consideravelmente. As facilidades de
compra parcelada de automóveis também aumentaram, ao
ponto de o número de veículos
nas ruas levar a uma situação
indomável, da qual nenhuma
espécie de rodízio parece dar
conta.
Enfim, por mais que nos
queira fazer crer no contrário o
colunista, o fato é que venceu a
cultura do excesso, do desperdício e da irresponsabilidade
em relação a um futuro que não
seja imediato.
É por isso que, a cada dia
mais, temos que conviver com
insanidades como, para ficar
em pequenos exemplos, guardanapos de papel embrulhados
um a um em embalagens plásticas, canudos de plástico revestidos um a um em embalagens
de papel, sachês de material
plástico embalando pequenas
porções de mostarda, ketchup,
azeite, maionese etc., que, numa estúpida assepsia (que há
poucas décadas, sim, pareceria
ridícula), vêm, gota a gota, degradando o planeta.
Era Bush
E, é claro, esse estado de coisas combina bem com a conjunção de intransigências que
marca a era Bush, apoiada principalmente pelos lobbies das
indústrias petrolífera e armamentista, não só imensamente
mais poderosas do que as que
lutam pela preservação do
meio ambiente, como também
com interesses antagônicos a
elas.
Muito mais graves do que as
"proibições" atribuídas por Ascher aos ecologistas são as restrições à liberdade individual
levadas a cabo pelo governo
americano em sua campanha
antiterrorista -correspondências violadas, prisões sem mandados ou advogados, perseguições a pessoas que se oponham à guerra, cerceamento de manifestações de rua, restrições
crescentes para concessões de
vistos a imigrantes.
Mas o que é mais inaceitável
é a afirmação de que "a preocupação exacerbada com o clima
e o meio ambiente, coisas cujo
funcionamento se conhece
pouco e mal, já resultaria em
problemas imediatos, pois, para a parcela miserável da humanidade, dificulta cada vez mais
a superação de seu estado", ante a evidência de que os mais
desfavorecidos economicamente são também os que mais
sofrem as conseqüências das
contaminações tóxicas e dos
desvios naturais decorrentes
delas.
Além disso, Ascher ignora os
inúmeros projetos de inclusão
social relacionados à coleta seletiva de lixo e reciclagem, por
exemplo, entre outras iniciativas ecológicas.
Quanto ao Protocolo de Kyoto (que os EUA não assinaram,
apesar de serem os maiores
contaminantes), cujas metas
parecem hoje insuficientes
diante dos mais recentes relatórios sobre a situação ambiental, o articulista afirma "sabermos que era praticamente inútil, que as nações mais vocalmente empenhadas em seu sucesso têm sido as que mais longe ficaram das metas propostas", como se uma lei devesse
deixar de existir apenas pelo fato dela não estar sendo devidamente cumprida.
Há pessoas que defendem esse estado de coisas dizendo:
"poderia ser pior", como no caso da ordem mundial ser tomada pelo fundamentalismo islâmico, em que todos os considerados "infiéis" poderiam sofrer
violência desmedida.
Eu acho que deveríamos
pensar: "poderia ser melhor",
se os Estados Unidos e os países
que os seguem assumissem
seus compromissos com o controle de abusos ambientais; se
houvesse maior liberdade de
trânsito entre as fronteiras; se a
intolerância desse lugar ao diálogo; se todos pensassem não só
nos seus filhos e netos, mas
também nos tataranetos dos
seus tataranetos.
ARNALDO ANTUNES é poeta, compositor e
cantor
Texto Anterior: Criador do irreverente "Página 12" funda novo jornal diário Próximo Texto: Ascher atacou "Manias de Minoria" Índice
|