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FERREIRA GULLAR
O dono do dinheiro
O problema está no uso que
os detentores dos cartões,
simples funcionários ou
ministros, fazem deles
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O CASO dos cartões corporativos -o novo escândalo que
envolve o governo de Lula já
comentado e analisado por toda a
imprensa- me faz lembrar a frase
de um espertalhão que a polícia gravara. Reivindicando, para si, uma
parte maior dos recursos públicos
que estava roubando, argumentou:
"Esse dinheiro não tem dono".
Tal argumento, embora falso, contém certa dose de verdade, se não
em seu conteúdo essencial, mas no
entendimento implícito de como é
visto o bem público por boa parte
dos que lidam com ele: não é teu, não
é meu, é nosso.
É óbvio que o dinheiro é do povo.
Mas quem é o povo? Aquela gente
nordestina, magricela, tostada de
sol, que mal sabe falar? Os funcionários dos supermercados, os feirantes, os choferes de caminhão que
cruzam o país, tontos de sono e que
nem jornais lêem? Perguntem a eles
quantos ministérios tem o governo
atual e para que serve a secretária
especial de Promoção da Igualdade
Racial e a resposta será um sorriso
encabulado de quem não entende a
pergunta nem nunca ouviu falar de
tais coisas. Se são eles os donos de bilhões e bilhões de reais que o governo recolhe com os impostos, não deve nos causar surpresa a citada frase
daquele espertalhão.
Os cartões corporativos foram
criados com o propósito de melhor
viabilizar pequenas despesas e facilitar o controle desses gastos. Nada
contra. O problema, como sempre,
está no uso que os detentores desses
cartões -sejam simples funcionários ou ministros- fazem deles. E isso depende da opinião que se tenha
sobre o mencionado ponto: essa grana tem dono ou não? A resposta a tal
pergunta será uma ou outra, conforme o grau de consciência que os detentores dos cartões tenham da coisa pública. E esse grau de consciência, no Brasil, não parece muito alto
nem muito comum, do contrário
não nos depararíamos com os abusos que os jornais noticiaram.
Cartão de crédito, como se sabe, é
um troço diabólico, porque faz o cara pensar que pode gastar à vontade,
sem limites; isso quando o cartão é
dele, o que significa que, amanhã ou
depois, terá que pagar a conta. Imagine agora se lhe põem nas mãos um
cartão que lhe permite gastar dinheiro que não é seu e, aliás, não tem
dono? É tentação demais, mesmo
para um ministro ou um secretário
especial da Pesca!
Veja como é difícil resistir à tentação: esse secretário da Pesca, estando em Ribeirão Preto, entrou na
choperia Pingüim e bebeu R$ 70 de
chopes; depois, no Carnaval de
2007, veio para o Rio, hospedou-se
no hotel Glória e, entre hospedagem, bebidas e churrascos, gastou
quase R$ 800, mas alega que estava a
trabalho; cara dedicado, esse, trabalhando duro em pleno Carnaval carioca! Já o ministro dos Esportes,
entre Rio e São Paulo, gastou só em
comida R$ 1.500, mas tais despesas
não se comparam com as da ex-ministra da Igualdade Racial: R$
171.500 com táxis, sendo que, desse
montante, R$ 122 mil foram pagos a
uma só locadora de automóveis. É a
farra do boi, para me valer da expressão usada pelo presidente Lula
em outra ocasião; sobre a farra de
agora, nenhuma palavra, mas a ministra Matilde, ele demitiu, coerente
com sua tática de evitar contaminações.
O caso, porém, mais representativo dessa relação obscena com o dinheiro público é o da reitoria da Universidade de Brasília, que usou recursos da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos
(Finatec), no total de R$ 470 mil
(preço de um bom apartamento de
três quartos em Copacabana) para
equipar o apartamento funcional
em que reside o reitor. Conforme
dados oficiais, a Finatec comprou,
em fevereiro de 2007, um saca-rolhas por R$ 859 (preço de uma máquina de lavar), um abridor de latas
por R$ 199, um liquidificador por R$
499, além de 108 taças de vinho e copos no valor de R$ 4.140. Acrescentem-se três lixeiras, pelo valor de total de R$ 2.783, e ainda um fogão que
custou R$ 7.100, quando, em qualquer loja, um fogão de seis bocas
custa R$ 1.400. Quantas bocas terá,
então, esse fogão do apartamento do
reitor?
A propósito desses gastos, um funcionário da reitoria da UnB alegou
que a compra de tais utensílios corresponde à importância do cargo de
reitor. É o mesmo raciocínio que leva à construção de verdadeiros palácios para
abrigar órgãos públicos e a reservar,
para um ministro, um gabinete de
46 m2. É o Brasil da ostentação e da
insensibilidade, que nada tem a ver
com o Brasil de verdade, dos hospitais que não funcionam, das estradas esburacadas, das escolas sem
professores e das penitenciárias superlotadas. O Brasil real, onde vive o
povo, o dono do dinheiro.
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