São Paulo, terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Regresso a Munique


Para fanáticos islamitas, a Inglaterra deu sinal de rendição ao censurar deputado


A LIBERDADE não é assunto fácil. No século 19, Karl Marx, fechado na biblioteca do Museu Britânico, lamentava-se dos ingleses com amargura. Para Marx, a liberdade de expressão de que ele desfrutava era coisa pouca. Marx queria mais. Queria que os ingleses levassem a sério as suas ideias e marchassem com ele para derrubar o sistema capitalista que, ironia das ironias, lhe concedera exílio e condições de trabalho.
Marx nunca entendeu a essência da liberdade de expressão. Porque a liberdade de expressão implica dois postulados, não apenas um. Sim, ela começa por permitir que os indivíduos expressem as suas ideias sem a coerção de terceiros.
Mas existe um segundo postulado usualmente esquecido: o fato de alguém ter liberdade de expressão não implica, logicamente, que os outros têm de prestar atenção ao que ele diz.
Pessoalmente, tento aplicar esse raciocínio todos os dias da minha vida. Sobretudo quando sou alvo de críticas públicas a respeito dos meus artigos. Se eu desfruto de liberdade de expressão, é justo que os outros partilhem dessa prerrogativa. Mas isso não implica que eu tenha de prestar atenção ao que eles dizem. Como diria o dramaturgo Tom Stoppard, as pessoas não devem subestimar a minha capacidade de não querer saber, de não me importar, de estar pouco me lixando.
Eis a raiz da tolerância: estarmos pouco nos lixando. Ou, em lin- guagem mais erudita, não tomarmos o que é dito, escrito ou feito com a mentalidade própria de um extremista.
A Inglaterra sempre foi um exemplo desse espírito, e não apenas com Marx. Vinte anos atrás, em fevereiro de 1989, um clérigo iraniano lançava uma condenação à morte sobre o escritor Salman Rushdie. O pretexto para a "fatwa" era o romance assaz mediano de Rushdie, "Os Versos Satânicos", que retrata o profeta Maomé de forma "sacrílega". Em 1989, a Inglaterra estava pouco se lixando para Khomeini: concedeu proteção a Rushdie, sim, mas jamais censurou ou criticou o escritor. E jamais pediu desculpas a um regime medieval e terrorista.
Tudo isso mudou. E mudou na semana passada de forma cristalina e brutal. Geert Wilders, deputado holandês, resolveu fazer um filme sobre a ligação fundamental entre o islã e a violência. O filme tem 17 minutos, intitula-se "Fitna" e está disponível na internet. Eu assisti ao vídeo. Eu bocejei com ele. O filme é desinteressante (como obra) e iletrado (como tese): para Wilders, existe uma ligação direta entre o Corão e o terrorismo. Wilders comete o erro, aliás comum, de confundir o terrorismo islamita (um movimento essencialmente revolucionário e político) com o fundamentalismo islâmico (uma corrente religiosa que, apesar da sua intolerância hermenêutica, não tem necessariamente contornos terroristas).
Seja como for, o problema não está no filme: a mediocridade estética e a ignorância religiosa não constituem crime. O problema está no gesto do governo britânico que, em nome da "harmonia" e da "segurança pública", impediu Geert Wilders de entrar em solo britânico. O holandês fora convidado pela Câmara dos Lordes para apresentar a sua obra. Mas o governo de Sua Majestade esqueceu o seu próprio patrimônio liberal e barrou a entrada a Wilders para contentar a rua islâmica.
A Inglaterra deixou de não querer saber, de não se importar, de estar pouco se lixando. Deixou de ser a Inglaterra tolerante e pluralista que fez a grandeza dos seus antepassados. E passou a acreditar que, pela censura de tudo aquilo que "ofende" terceiros, será possível apaziguar uma população que cresce em número e em fanatismo. Pela rendição dos nossos valores, será possível "acomodar" os valores dos outros, certo?
Não. Errado. Contrariamente ao que pensam os sábios de esquerda ou de direita, aquilo que ofende o terrorismo islamita não são os valores que estruturam o Ocidente pós-iluminista, alicerçados na discussão livre e racional. O que ofende é a ausência de valores: é a incapacidade do Ocidente para defender aquilo em que acredita. É o nosso niilismo ético, a nossa cobardia relativista, o nosso rasteiro materialismo existencial. A Inglaterra do premiê Gordon Brown fala em "compromisso". Para os fanáticos, o "compromisso" é um sinal de rendição. Se nós não nos respeitamos, por que raio devem eles respeitar-nos?
Em 1939, Hitler dizia profeticamente aos seus generais: "Os nossos inimigos são pequenos vermes". E acrescentava: "Eu vi os olhos deles em Munique".
Pois viu. Viu o medo e a fraqueza da Europa. Esse medo, ontem como hoje, é o convite perfeito para o ataque e a destruição.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Memória: Morre em São Paulo a letrista Tereza Souza
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.