São Paulo, quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

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MARCELO COELHO

Terrores do passado


O mercado de DVDs é camarada com os cinquentões e oferece duas preciosidades


TALVEZ SEJA apenas devido à idade que avança, mas quem passou a meninice nos anos 60 e 70 sofre de acessos cada vez mais frequentes de nostalgia. Sei que existem, é claro, os nostálgicos da década de 80, e já devem andar por aí os órfãos de 90. Em todo caso, o mercado de DVDs é camarada com os cinquentões, e oferece atualmente duas preciosidades.
Em primeiro lugar, a coleção completa do "National Kid", simpático avô dos Power Rangers. A série japonesa, produzida em 1960 para ajudar na publicidade de uma fábrica de radinhos transistor, foi exibida no Brasil a partir de 1964.
Eu achava aterrorizante. Lembro-me de desligar a TV no meio do episódio, furioso por ser incapaz de suportar o riso diabólico dos Incas Venusianos. Volto a eles mais adiante.
O segundo pacote de DVDs apresenta as aventuras nacionalíssimas do "Vigilante Rodoviário", "audaz e temerário", como cantava o coral masculino no começo de cada episódio. Deve ser alguns anos mais antiga que o "National Kid", pois minha memória não guardou nenhuma cena específica do seriado.
Reconheço apenas, naqueles filmes curtos em preto e branco, algo como um esquema, uma estrutura visual, feita de estradas estreitas e vazias, de fatos despojados, de bandidos presos facilmente.
Como o mundo era vazio naquela época! O vigilante Carlos faz, sozinho, uma blitz na via Dutra; não há hipótese de engarrafamento por perto. Os intrépidos garotinhos que viviam sob a proteção do professor Masao Hata (National Kid nas horas vagas) seguem venusianos, misteriosos por terrenos baldios e caminhos cobertos de mato. Também no filme "Belíssima", de Visconti, os arredores de Roma são desertos, com um ou outro barraco de alvenaria isolado na paisagem branca.
Pensei que seria fácil ironizar a precariedade técnica do nosso "Vigilante". Surpreendi-me: conta com uma produção mais bem-cuidada que a do seriado japonês. Locações variadas, filmagens de diversos ângulos, um roteirinho bem montado em sua singeleza não envergonham ninguém.
A série brasileira provoca, em todo caso, sorrisos verdadeiramente nostálgicos. Constrói-se um país altamente organizado e confiável, em que policiais enfrentam eventuais gatunos com a força dos próprios punhos. Possuindo alguns rudimentos de caratê, o vigilante Carlos raras vezes tira o revólver da cartucheira.
Uma onda de crimes assola a cidade de São Paulo. Ladrões de automóveis. Impregnada de propósitos institucionais e educativos, a série nos ensina a não deixar a chave no contato quando formos fazer compras em algum magazine.
Não está nessa longínqua imagem de uma "ordem estabelecida" o aspecto mais antiquado do "Vigilante Rodoviário". O que chama a atenção é o quanto a cultura da época ainda era muito mais discursiva do que visual.
Ouvem-se coisas assim: "Cuidado, vigilante Carlos. É necessário acautelar-se ao máximo, pois estamos às voltas com bandidos perigosos". Mesmo assaltantes cuidam de colocar seus pronomes no lugar correto.
Coberto de frases semelhantes, "National Kid" paradoxalmente tira vantagem desse subdesenvolvimento visual. Sempre ridículos, é claro, os monstros japoneses mais recentes são exuberantes, grotescos, coloridos. As crianças de hoje podem conviver com alienígenas e naves espaciais de alegoria, sem passar pelo que passei.
Revejo "National Kid" e entendo as razões do meu terror. Crianças normais eram raptadas pelos alienígenas. O pai de uma delas recebe tremenda injeção no crânio, tornando-se incapaz de reconhecer a família: seu cérebro é agora venusiano também. O herói, baixinho e com um pompom no capacete, não é melhor que uma criança. Humanos morrem de verdade.
Não há coisa parecida nos "Power Rangers". A precariedade da década de 60 nos deixava, quem sabe, mais seguros (era o mundo do vigilante Carlos) e mais amedrontados (era a perversidade de "National Kid").
O medo, sem dúvida, tinha raízes imaginárias; hoje tornou-se real. O lado bom é que a paranoia, no que tem de patológico e de incontrolável, se dissipa -como a sombra de um inca, em preto e branco, entre as estrelas de papel pintado que brilhavam nas minhas insônias de 1964.

coelhofsp@uol.com.br


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