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MARCELO COELHO
Burocracia virtual
Obrigado por ligar. Sua ligação é muito importante
para nós. Se desejar serviços de
instalação, tecle 1. Para reagendamento de visita, tecle 2. Para
verificação de dados cadastrais,
tecle 3. Para informações sobre
plano de pagamento, tecle 4. Para
falar com um de nossos atendentes...
Não, você não conseguirá falar
com um de nossos atendentes.
Mas poderá ouvir, durante 25 minutos ou mais, sucessos como
"Moonlight Serenade" e o tema
de "Golpe de Mestre".
Também, quem mandou você
não ter em mãos o número de seu
cartão eletrônico, de sua matrícula no SAA (serviço de atendimento ao cliente), de seu cadastro na
Comunidade NetLig?
Muitas coisas mudam de forma
e de nome, mas no fundo permanecem iguais. A peregrinação que
temos de fazer de tecla em tecla é
a mesma que, antigamente, nos
levava a passar horas nas filas de
uma repartição burocrática.
Cada tecla, afinal de contas,
não passa de um guichê, e o cartão que devemos ter por perto ou
a senha que se impõe saber de cor
equivale ao papel, à guia, ao documento que nos exigem e que
nunca está a contento do funcionário.
É a burocracia sem papel, a burocracia dos impulsos eletrônicos.
Claro, há vantagens: não é preciso
sair de casa e, enquanto você espera atendimento, com o telefone
encaixado entre o ombro e a bochecha, sempre poderá fazer alguma outra coisa. Sugestões: pôr os
papéis em ordem na gaveta (você
poderá encontrar o cartão de crédito cujo desaparecimento tentava comunicar); teclar alguma outra senha de acesso no computador, se tiver internet banda larga
(se não tem, disque para nós hoje
mesmo); alongar os músculos do
pescoço e da nuca; ou entregar-se
a outras atividades corporais cujo
nome não seria conveniente declinar aqui.
De todo modo, a burocracia eletrônica segue os princípios da antiga. Quanto mais a instituição
ou a empresa economizam, mais
o usuário perde tempo. No hospital público ou na assistência técnica da máquina de lavar, sempre vigora a lei da seleção natural: eliminam-se os fracos, para
que só os mais fortes, ou os mais
desesperados, cheguem até o fim
do processo.
Claro que, quanto mais procurado o serviço, maior a fila. Se notamos tanta burocracia nas instituições públicas, é porque seu
acesso é universal. Em inúmeras
entidades privadas vemos a burocracia aumentar, justamente porque passaram a ser procuradas
pelo grosso da população. Os planos de saúde particulares constituem o maior exemplo disso, mas
bancos e cartões de crédito, cujo
universo de clientes se ampliou
muito, não ficam atrás.
Experimento reações contraditórias quando vou a um caixa eletrônico. Em comparação com a fila tradicional, sem dúvida ganho
tempo. Mas sinto que estou também "trabalhando" para o banco.
Passo a senha, digito, confirmo,
conto o dinheiro: eis que sou um
novo funcionário do caixa, trabalhando de graça, enquanto algum
bancário foi despedido em troca.
Tudo bem. Gasto menos tempo
no banco. Mas diminuiu também
a minha impressão de perder
tempo. Todo trabalho, por mais
mecânico que seja, faz o tempo
passar mais depressa do que a pura espera. Fala-se de democracia
participativa, mas a "burocracia
participativa" também deveria
merecer os seus filósofos.
À medida que um serviço se generaliza, crescem as possibilidades de fraude. Quando uma empresa, pública ou privada, passa
do âmbito de uma distinta clientela para o universo multitudinário e turvo da humanidade em
seu conjunto, torna-se inevitável
multiplicar as precauções contra
os indivíduos de má-fé; isso significa mais burocracia.
O que é um antivírus, um firewall ou um anti-spam a não ser a
burocratização do nosso computador? Eu costumava usar um antivírus que tinha rigores de fiscal
de alfândega, parecia usar carimbos de Polícia Federal em dia de
operação-tartaruga toda vez que
se punha a examinar a mensagem que entrava e a mensagem
que saía do meu Outlook.
Acontece que o computador, como tudo o que tem telinha (um
caça-níqueis, uma TV, um videogame, um caixa eletrônico) sempre oferece ao usuário algo de lúdico, de viciante, de hipnótico.
Já a burocracia telefônica (volto
a ela) é muito pior. Seu maior pecado, a meu ver, está na confusão
que estabelece entre as categorias
de tempo e de espaço. Entre num
desses sistemas de "tecle 5 se deseja isto, tecle 6 se deseja aquilo..." e
tente corrigir uma decisão errada.
Os sistemas mais extensos e irritantes usam a famigerada tecla 9
-"para mais opções"-, abrindo-se em alternativas que para
serem conhecidas integralmente
exigiriam a vida inteira. Tudo ficaria mais fácil se o sistema fosse
visualizado no espaço, num esquema em árvore, num organograma, num menu de website
-ou mesmo num mapa de repartição, com suas ramificações
em corredores, departamentos e
guichês. No máximo, ficaremos
andando de um lado para outro.
O problema do "tecle isto, tecle
aquilo" é que ele se desenvolve no
tempo, não no espaço. Somos forçados a prosseguir em alternativas que será sempre mais custoso
reverter; avançamos em decisões
tomadas no escuro, como se navegássemos num fluxo betuminoso,
por rios e córregos cada vez mais
estreitos, cada vez mais espessos,
carregados de todas as opções já
feitas, de todo o tempo acumulado e perdido naquela ligação, sem
muita esperança de que, na extrema ponta do percurso, uma voz
humana venha afinal falar conosco.
É assim que o sistema de ramais
automáticos guarda incômoda
semelhança com nossa própria vida adulta; tem algo de anacrônico, de auditivo, de analógico. Já
as telas da internet, organizadas
espacialmente, com seus cliques
de mouse, seus compartimentos
de todas as cores, seus guichês planificados e seus pop-ups imprevistos e festivos, são um modelo bem
alegre em que mirar. Desde que a
conexão não caia de repente.
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