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DRAUZIO VARELLA
O crime da camisinha
Quanto sofrimento os senhores de aparência piedosa ainda causarão em nome de Deus?
"PRESERVATIVO TEM que ser
doado e ensinado como
usar", disse o presidente,
no Dia Internacional da Mulher. É a
primeira vez que um presidente da
República faz defesa tão contundente do uso da camisinha em nosso
país. Imediatamente, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) divulgou nota: "A posição
da Igreja é clara. Sempre o foi. Não
mudou nem mudará. Não repetiremos nosso parecer a respeito. O modo de educar nossos adolescentes e
jovens não pode ser feito com base
na permissividade, incitando-os a
um comportamento desregrado".
Assim que surgiram os primeiros
casos de Aids, estudos epidemiológicos conduzidos entre homens homossexuais de San Francisco, usuários de drogas injetáveis de São Paulo, prostitutas da Tailândia, caminhoneiros do Quênia e outros grupos de risco demonstraram de forma irrefutável que o preservativo
era a forma mais eficaz de evitar a
transmissão sexual do HIV.
Baseada nas pesquisas, a Organização Mundial de Saúde passou a recomendar que todos os países promovessem o uso e garantissem o
acesso universal aos preservativos.
Na época, o papa, autoridade máxima do catolicismo, pronunciou-se
contra a orientação da OMS, com o
argumento de que distribuir camisinhas seria incitar os jovens a práticas condenáveis. Segundo ele, havia
uma receita infalível para acabar
com a AIDS: "Sexo, só depois do casamento, e nunca fora".
Quem pode discordar de Sua Santidade? Se todos os habitantes da
Terra acatassem sua prescrição, a
epidemia realmente chegaria ao fim.
O problema é que um número absurdo de mulheres e homens tem a
mania de manter relações sexuais
antes, durante e fora do casamento.
Essas pessoas são tão insensíveis aos
conselhos do sumo pontífice, que
mesmo se ressuscitássemos Hitler,
Stálin e Torquemada e os reencarnássemos em diabólica trindade numa única autoridade eclesiástica dotada dos mais incríveis poderes do
mundo, ela seria incapaz de convertê-las à fidelidade conjugal e à castidade pré-matrimonial.
Você pode argumentar, leitor, que
essa discussão é irrelevante, que o
adolescente com a namorada no
canto escuro não deixará de colocar
a camisinha porque os bispos são
contra nem vai fazer uso dela só porque o presidente Lula é a favor. De
fato, mas a resposta pronta da CNBB
ao presidente é emblemática. Explico por quê.
A força da oposição obstinada da
Igreja Católica à distribuição farta e
gratuita de preservativos não está
absolutamente em sua influência
moral ou religiosa sobre seus fiéis,
cada vez mais raros e restritos às
idades em que a atividade sexual se
torna bissexta. O poder dos religiosos está em intimidar os políticos
brasileiros.
De que forma? Faça a experiência
de visitar um posto de saúde numa
cidade qualquer. Pergunte se existe
no município alguma estratégia de
distribuição de camisinhas. Nos
postos em que elas estiverem disponíveis, você ouvirá que são entregues aos que forem buscá-las.
Por que as autoridades fazem corpo mole na hora de fazer a camisinha chegar às mãos dos usuários que
mais necessitam dela: os mais pobres, os mais jovens, os que moram
mais longe, os usuários de droga, as
mulheres que vendem o corpo?
Por uma única razão: os políticos
fogem do confronto com a Igreja Católica como o diabo da cruz. Só por
causa da distribuição, o prefeito vai
se indispor com o bispo? Mesmo
que o padre da cidade discorde da
orientação dada por seus superiores, como acontece com muitos religiosos sensíveis às agruras das comunidades em que atuam, que força
terá para subverter a hierarquia da
Igreja?
Levar a sério a opinião dos religiosos a respeito da melhor estratégia
para combater a Aids é tão ridículo
quanto contratar epidemiologistas
para rezar missa e ouvir confissão.
Diminuir a velocidade de disseminação do HIV é tarefa para técnicos
da mais alta qualidade, capazes de
elaborar programas de prevenção
baseados em evidências científicas
incontestáveis.
A CNBB afronta o presidente da
República porque pretende reafirmar para os políticos menos poderosos que sua "posição é clara. Não
mudou nem mudará".
Se não mudou nem mudará, pergunto: por quanto tempo a Igreja
Católica cometerá o crime continuado de dificultar o acesso dos brasileiros à camisinha, em plena epidemia de uma doença sexualmente
transmissível, incurável? Quanto
sofrimento humano esses senhores
de aparência piedosa ainda causarão
em nome de Deus, impunemente?
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