|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Figura de bastidor do grupo tropicalista, produtor critica rumos do axé (que ajudou a inventar) e lança tributo a Jorge Amado
Roberto Sant'Ana, o último pau-de-arara de Irará
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial a Salvador
Em 1993, Gilberto Gil compôs
"Baião Atemporal", numa homenagem ao "último pau-de-arara
de Irará". O último pau-de-arara
de Irará (BA) era Roberto Sant'Ana, hoje 56, membro original do
grupo de amigos que mais tarde
faria o tropicalismo.
Produtor musical e proeminência de bastidor, Roberto tornou-se um dos homens mais poderosos da indústria fonográfica nos
anos 70 -na Philips/PolyGram,
hoje Universal-, até sair de cena
rumo a uma carreira "outsider".
Embora se mantenha marginal
à grande cena, hoje é coordenador do selo musical Sons da Bahia, do governo baiano. Por ele,
acaba de produzir e lançar o CD-tributo "Jorge Amado - Letra &
Música", com nomes como os
dos amigos tropicalistas.
Primo de Tom Zé e pai de Lucas
Santtana (que estréia em disco
agora -leia à pág. 6-5), voltou há
pouco a trabalhar com Gil -de
quem produzira "Refavela"
(77)-, após 22 anos de separação
artística. Estão gravando juntos a
trilha do filme "Eu Tu Eles".
Em entrevista à Folha em Salvador, onde voltou a morar após
duas décadas radicado no Rio, ele
revisitou a história da MPB e fez
um balanço de sua trajetória.
Folha - Você é o "último pau-de-arara de Irará"?
Roberto Sant'Ana - É, do baião
do Gil, uma homenagem que me
comove até hoje. Nasci em Irará,
no Recôncavo Baiano. Hoje fica a
uma hora de Salvador, mas ficava
a quase um dia de viagem. Sou de
uma família muito numerosa.
Não conheço hoje metade dela.
Outro dia precisei de um tecladista, só no final do trabalho fui saber que era meu primo.
Folha - Tom Zé, seu primo, fala
de um cisma na família...
Sant'Ana - Era uma família de
classe média. Ninguém atingiu a
fortuna nem a miséria até hoje. A
cisão maior era política. Meu pai
era chefe da UDN, foi prefeito de
Irará. E toda a família era comunista, do Partidão. A família foi
toda educada e criada fugindo da
polícia. Eu era um anarquista. Na
verdade fiquei meio em cima do
muro, nunca participei politicamente. Gostava da festa, da arte.
Uma época Tom Zé quis desistir
da carreira, ser comerciante em
Irará. Fui responsável por ele não
desistir. Somos muito ligados, estamos sempre nos falando. Tropicalistas perante a opinião pública
são Caetano e Gil, mas Tom Zé
começou a ser tropicalista muito
antes, quando não existia o rótulo
ainda. É um criador espetacular,
de bom senso, mas é complicado
como ele traçou o caminho da vida dele. É recluso, o antiartista.
Fui para Salvador porque não
havia escola em Irará, teatro foi o
que estudei. Tive um grande professor, João Augusto, que criou o
Teatro Vila Velha. Lá estreou o
"Nós, por Exemplo", que criei em
1961 com Tom Zé, Gil, Caetano,
Fernando Lona, Djalma Corrêa,
Emanoel Araújo...
Folha - Baseado nessa experiência é possível concluir que
as pessoas que vão fazer a arte
num país se conhecem e se reúnem na juventude, por afinidades pessoais?
Sant'Ana - Ah... E cada um traz
um pouco de sua cultura familiar
e regional para essa panela. É uma
grande feijoada. Hoje a individualidade e a luta pelo dinheiro e pela
posição social degradaram isso.
Estivemos juntos desde o início.
Eu estava lá dentro, participava
com eles, como iluminador, produtor, carregador de violão, qualquer coisa. Fiquei com eles em
São Paulo até 67. Voltei para a Bahia antes de terminar a tropicália.
Folha - Como você definiria
seu papel na tropicália?
Sant'Ana - Nenhum. Fui mero
ajudante, mero colaborador. Como não me tornei músico profissional, fui estudar a história da
música. Abastecia eles de informações sobre Assis Valente, Gordurinha, Baiano, Noel Rosa, folclore. Nos 70, viajei o Brasil inteiro com o percussionista Djalma
Corrêa para gravar as manifestações folclóricas. Isso está nos arquivos da Universal e nunca foi
usado. Eles não sabem usar.
Embora próximo dos tropicalistas, eu não aparecia, porque
sempre fui homem de bastidor,
de criação lá atrás. Sou responsável por algumas pessoas que estão
aí no mundo hoje, além de Gil,
Caetano, Bethânia, Gal. Quinteto
Violado, Fafá de Belém, Alcione,
Emílio Santiago, Kleiton e Kledir
quando ainda eram Almôndegas,
em todos eles sei que há meu dedo
de produtor, meu faro.
Sei que estou nessa história,
queiram ou não, não só como dizem, "o homem que apresentou
Gil a Caetano". Isso é citado há 30
anos, parece que só fiz isso na vida. Claro que é bacana, mas se
não apresentasse eles se encontrariam pela música. Mais importante é o trabalho que fizemos juntos
desde 1961. Nem Caetano nem Gil
queriam ser músicos, como Tom
Zé também não queria. Quem ficava atazanando eles para tocar
era eu. Não vivo desses méritos,
não me dão lucro pecuniário ou
financeiro, mas me dão um lucro
histórico de que não abro mão.
Eu e Tom Zé éramos do CPC da
UNE da Bahia e fomos criar um
departamento de música. Gil morava no mesmo bairro, nos Barris,
tocava acordeom e estava começando, então o convidamos. Aí eu
soube por Edy Star, um cantor
que fez muito sucesso no Rio e
hoje não sei por onde anda, que
havia um casal de Santo Amaro
cantando, lindos. Fui ver, não era
um casal, eram Caetano e Bethânia. Então os convidei a participar
do CPC. Caetano tinha um medo
de se meter em política. Foi, mas
ficou com um pé atrás. Ele não
queria ser um ativista político,
sempre rejeitou isso. De todo esse
medo dele é que nasceu um grupo
de música separado do CPC. Caetano sugeriu que ouvíssemos uma
amiga dele, balconista de uma loja
de discos. Era Gal, claro que foi incorporada. Com todas as diferenças culturais e de pensamento, fomos nos ajeitando e formamos
esse grupo que era muito coeso.
Folha - Por que justamente
Caetano, que não queria se envolver em política, foi tão central nos episódios de exílio?
Sant'Ana - Foi bode expiatório.
O Exército os pegou por causa do
movimento da tropicália, da música. Foi algo como "vamos pegar
esses dois caras que estão em evidência, fazendo barulho, vamos
dar um grampo neles e eles ficam
calados". A tropicália era uma
grande esculhambação, uma
grande bacanal da música. Não
foi questão política nenhuma.
Folha - Nelson Motta citou à
Folha que o exílio acabou beneficiando os artistas exilados.
Eles capitalizaram o episódio?
Sant'Ana - Foi um trauma muito violento. Nunca capitalizaram
nada. Eles têm a marca da prisão,
de ir morar em Londres, um lugar
em que não queriam morar. Isso é
assim para qualquer um. Quantos
executivos são exilados, determinados a gerenciar suas empresas
em lugares para onde não queriam ir? É outro tipo de exílio.
Antes, havia outro tipo de poder, que era o poder da universidade. Depois a universidade ficou
pobre, sem poder. É até hoje. O
poder político cresceu, e hoje na
Bahia há uma liderança forte, que
sabe de todos os cantinhos da Bahia. Digo sempre que a Bahia tem
de rezar para Antônio Carlos Magalhães demorar muito a morrer.
Se ele morre agora, essa Bahia vai
ser um caos, porque não há outra
liderança.
Folha - Líderes antigos, como
ACM ou mesmo os artistas, não
se tornam guardiães demais, inclusive trazendo o dado autoritário, coronelista?
Sant'Ana - Até tem esse dado,
mas ele compensa com outras
coisas. Ninguém é de todo ruim,
ninguém é de todo bom. Ele batalha pela condição de líder dele,
pela Bahia, pelos baianos. Se isso é
demagógico, o Estado é beneficiado.
Texto Anterior: Programação de TV Próximo Texto: Elencos da Warner e da Bahia contrastam no CD Índice
|