São Paulo, segunda-feira, 17 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Figura de bastidor do grupo tropicalista, produtor critica rumos do axé (que ajudou a inventar) e lança tributo a Jorge Amado
Roberto Sant'Ana, o último pau-de-arara de Irará

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial a Salvador

Em 1993, Gilberto Gil compôs "Baião Atemporal", numa homenagem ao "último pau-de-arara de Irará". O último pau-de-arara de Irará (BA) era Roberto Sant'Ana, hoje 56, membro original do grupo de amigos que mais tarde faria o tropicalismo.
Produtor musical e proeminência de bastidor, Roberto tornou-se um dos homens mais poderosos da indústria fonográfica nos anos 70 -na Philips/PolyGram, hoje Universal-, até sair de cena rumo a uma carreira "outsider".
Embora se mantenha marginal à grande cena, hoje é coordenador do selo musical Sons da Bahia, do governo baiano. Por ele, acaba de produzir e lançar o CD-tributo "Jorge Amado - Letra & Música", com nomes como os dos amigos tropicalistas.
Primo de Tom Zé e pai de Lucas Santtana (que estréia em disco agora -leia à pág. 6-5), voltou há pouco a trabalhar com Gil -de quem produzira "Refavela" (77)-, após 22 anos de separação artística. Estão gravando juntos a trilha do filme "Eu Tu Eles".
Em entrevista à Folha em Salvador, onde voltou a morar após duas décadas radicado no Rio, ele revisitou a história da MPB e fez um balanço de sua trajetória.

Folha - Você é o "último pau-de-arara de Irará"?
Roberto Sant'Ana -
É, do baião do Gil, uma homenagem que me comove até hoje. Nasci em Irará, no Recôncavo Baiano. Hoje fica a uma hora de Salvador, mas ficava a quase um dia de viagem. Sou de uma família muito numerosa. Não conheço hoje metade dela. Outro dia precisei de um tecladista, só no final do trabalho fui saber que era meu primo.

Folha - Tom Zé, seu primo, fala de um cisma na família...
Sant'Ana -
Era uma família de classe média. Ninguém atingiu a fortuna nem a miséria até hoje. A cisão maior era política. Meu pai era chefe da UDN, foi prefeito de Irará. E toda a família era comunista, do Partidão. A família foi toda educada e criada fugindo da polícia. Eu era um anarquista. Na verdade fiquei meio em cima do muro, nunca participei politicamente. Gostava da festa, da arte.
Uma época Tom Zé quis desistir da carreira, ser comerciante em Irará. Fui responsável por ele não desistir. Somos muito ligados, estamos sempre nos falando. Tropicalistas perante a opinião pública são Caetano e Gil, mas Tom Zé começou a ser tropicalista muito antes, quando não existia o rótulo ainda. É um criador espetacular, de bom senso, mas é complicado como ele traçou o caminho da vida dele. É recluso, o antiartista.
Fui para Salvador porque não havia escola em Irará, teatro foi o que estudei. Tive um grande professor, João Augusto, que criou o Teatro Vila Velha. Lá estreou o "Nós, por Exemplo", que criei em 1961 com Tom Zé, Gil, Caetano, Fernando Lona, Djalma Corrêa, Emanoel Araújo...

Folha - Baseado nessa experiência é possível concluir que as pessoas que vão fazer a arte num país se conhecem e se reúnem na juventude, por afinidades pessoais?
Sant'Ana -
Ah... E cada um traz um pouco de sua cultura familiar e regional para essa panela. É uma grande feijoada. Hoje a individualidade e a luta pelo dinheiro e pela posição social degradaram isso. Estivemos juntos desde o início. Eu estava lá dentro, participava com eles, como iluminador, produtor, carregador de violão, qualquer coisa. Fiquei com eles em São Paulo até 67. Voltei para a Bahia antes de terminar a tropicália.

Folha - Como você definiria seu papel na tropicália?
Sant'Ana -
Nenhum. Fui mero ajudante, mero colaborador. Como não me tornei músico profissional, fui estudar a história da música. Abastecia eles de informações sobre Assis Valente, Gordurinha, Baiano, Noel Rosa, folclore. Nos 70, viajei o Brasil inteiro com o percussionista Djalma Corrêa para gravar as manifestações folclóricas. Isso está nos arquivos da Universal e nunca foi usado. Eles não sabem usar.
Embora próximo dos tropicalistas, eu não aparecia, porque sempre fui homem de bastidor, de criação lá atrás. Sou responsável por algumas pessoas que estão aí no mundo hoje, além de Gil, Caetano, Bethânia, Gal. Quinteto Violado, Fafá de Belém, Alcione, Emílio Santiago, Kleiton e Kledir quando ainda eram Almôndegas, em todos eles sei que há meu dedo de produtor, meu faro.
Sei que estou nessa história, queiram ou não, não só como dizem, "o homem que apresentou Gil a Caetano". Isso é citado há 30 anos, parece que só fiz isso na vida. Claro que é bacana, mas se não apresentasse eles se encontrariam pela música. Mais importante é o trabalho que fizemos juntos desde 1961. Nem Caetano nem Gil queriam ser músicos, como Tom Zé também não queria. Quem ficava atazanando eles para tocar era eu. Não vivo desses méritos, não me dão lucro pecuniário ou financeiro, mas me dão um lucro histórico de que não abro mão.
Eu e Tom Zé éramos do CPC da UNE da Bahia e fomos criar um departamento de música. Gil morava no mesmo bairro, nos Barris, tocava acordeom e estava começando, então o convidamos. Aí eu soube por Edy Star, um cantor que fez muito sucesso no Rio e hoje não sei por onde anda, que havia um casal de Santo Amaro cantando, lindos. Fui ver, não era um casal, eram Caetano e Bethânia. Então os convidei a participar do CPC. Caetano tinha um medo de se meter em política. Foi, mas ficou com um pé atrás. Ele não queria ser um ativista político, sempre rejeitou isso. De todo esse medo dele é que nasceu um grupo de música separado do CPC. Caetano sugeriu que ouvíssemos uma amiga dele, balconista de uma loja de discos. Era Gal, claro que foi incorporada. Com todas as diferenças culturais e de pensamento, fomos nos ajeitando e formamos esse grupo que era muito coeso.

Folha - Por que justamente Caetano, que não queria se envolver em política, foi tão central nos episódios de exílio?
Sant'Ana -
Foi bode expiatório. O Exército os pegou por causa do movimento da tropicália, da música. Foi algo como "vamos pegar esses dois caras que estão em evidência, fazendo barulho, vamos dar um grampo neles e eles ficam calados". A tropicália era uma grande esculhambação, uma grande bacanal da música. Não foi questão política nenhuma.

Folha - Nelson Motta citou à Folha que o exílio acabou beneficiando os artistas exilados. Eles capitalizaram o episódio?
Sant'Ana -
Foi um trauma muito violento. Nunca capitalizaram nada. Eles têm a marca da prisão, de ir morar em Londres, um lugar em que não queriam morar. Isso é assim para qualquer um. Quantos executivos são exilados, determinados a gerenciar suas empresas em lugares para onde não queriam ir? É outro tipo de exílio.
Antes, havia outro tipo de poder, que era o poder da universidade. Depois a universidade ficou pobre, sem poder. É até hoje. O poder político cresceu, e hoje na Bahia há uma liderança forte, que sabe de todos os cantinhos da Bahia. Digo sempre que a Bahia tem de rezar para Antônio Carlos Magalhães demorar muito a morrer. Se ele morre agora, essa Bahia vai ser um caos, porque não há outra liderança.

Folha - Líderes antigos, como ACM ou mesmo os artistas, não se tornam guardiães demais, inclusive trazendo o dado autoritário, coronelista?
Sant'Ana -
Até tem esse dado, mas ele compensa com outras coisas. Ninguém é de todo ruim, ninguém é de todo bom. Ele batalha pela condição de líder dele, pela Bahia, pelos baianos. Se isso é demagógico, o Estado é beneficiado.


Texto Anterior: Programação de TV
Próximo Texto: Elencos da Warner e da Bahia contrastam no CD
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.