São Paulo, terça-feira, 17 de abril de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARNALDO JABOR

Precisamos aprender a negociar com os americanos

O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães inovou na diplomacia. Em vez do estilo francês "ancien régime", em vez de punhos de renda, sorrisos gelados, sacos puxados, ele partiu para a atitude americana: assumiu uma posição clara de defesa dos interesses nacionais.
Assim fazem os diplomatas anglo-saxões, diretamente ligados ao comércio de seu país. Pinheiro Guimarães foi demitido do Instituto de Relações Internacionais não por desobediência, mas porque desejou que o Itamaraty fosse pragmático, duro e corajoso, como os... americanos.
A Alca será um marco em nossa história diplomática. Até agora, diplomatas e ministros só debateram a favor dessa idéia gerada em Washington, eliminando a hipótese de recusá-la. Dizemos: "Vamos namorando, noivando e, se não quisermos, fugimos na porta da igreja". Parece liberdade, mas estamos obedecendo à principal estratégia americana: a política da "cabecinha". Não queremos pôr tudo... Só a cabecinha...
Como eles brincam em Wall Street: "Trust me means fuck you". Como discutir com gente para quem a legislação antidumping é intocável? Como discutir, se acabam de aprovar uma lei no Congresso que estende os subsidios à agricultura até 2011? Como discutir, se eles já deixaram claro que não abrem mão de taxas ecológicas ou sanitárias ?
Há pouco o diretor da CIA declarou que a agência existe hoje para fazer espionagem industrial e comercial. A meta atual dos Estados Unidos é fazer do Ocidente uma grande economia sem fronteiras, com exceção das fronteiras deles, claro. É o ideal do MAI (Multilateral Agreement for Investment), o tratado que deseja os Estados nacionais impedidos de legislar sobre as corporações globais. Não há nada além disso.
Para nós, a diplomacia é a arte do meneio; para eles, é uma linha reta, bruta, mercantil.
Como notou Tocqueville, para os americanos o comércio é uma atividade heróica como a guerra. Os navios yankees ganhavam na competição porque não paravam rapidamente nos portos, afrontavam tempestades, sofriam naufrágios para vender o chá mais barato. Conversando com Pinheiro Guimarães e lembrando de minha pobre experiência de cineasta, quando mercadejei filmes com eles, lembro algumas de suas técnicas de negociação.
Americano não trabalha com cordialidade ou com esperança de ser amado, como nós, que acreditamos que o cafezinho ou o papo ou o charme dobrarão os oponentes.
Americano trabalha com a política do "bode na sala", como disse o embaixador. Colocam uma exigência absurda, lutam por ela e, quando recuam, apenas chegaram aonde queriam desde o início. Exemplo? Fingiram forçar a Alca para 2002 e acabaram "concordando" com a Alca em 2005, onde sempre esteve. Nós achamos que foi uma "conquista". É o "bode na sala". Quando tiram o bode, o alívio parece uma vitória.
Os americanos, desde a fundação, se acham a nação predestinada a dominar o mundo. Isso lhes dá uma fé, uma voracidade altaneira, difícil de vencer em negociações. Não admitem a hipótese de perder. E, quando perdem, partem para retaliações comerciais e, se preciso, bélicas. Já começaram a falar mal da Embraer, num prenúncio ameaçador.
Os americanos se acham superiores a todo mundo. Nós, os pobres latinos, somos "complexados", temos por eles um grande temor reverencial, somos seus fãs secretos, somos antropófagos ao contrário: queremos ser comidos.
Os americanos inventaram o mito do pan-americanismo, da "boa vizinhança", de que estamos no mesmo barco do Ocidente, mas na verdade têm um grande desprezo por nós.
Ocultam isso e sabem, como ninguém, cooptar nossas elites deslumbradas, tanto as comerciais como as intelectuais.
Americano, repito, considera o comércio uma atividade militar. Há pouco, na crise asiática, quando o Japão imaginou criar uma espécie de FMI regional, Robert Rubin e Larry Summers voaram correndo num jato militar para impedir esse ganho de poder para os japorongas. Falaram disso comparando sua atitude comercial com a guerra do Vietnã.
Os americanos criaram uma sociedade impessoal, uniforme. Trabalham como um time e têm a coalizão de formigas. Para eles o detalhe é tão importante quanto o todo. Mas, para nós, dividem as questões com grande formalismo jurídico, dividem sempre, para provocar dispersão. Assim, fazem "cross colateralization" para nós, que ficamos amarrados em obrigações em cascata, enquanto eles ficam defendidos por pontos isolados. Exemplo: "Abram o mercado", eles dizem. "Só se vocês acabarem com sobretaxas", dizemos. "Ah... Uma coisa não tem nada a ver com a outra", retrucam... E, se empombarmos, fazem retaliações "colateralizadas".
Os americanos trabalham também pela divisão do inimigo. Sempre que surge uma potência numa região, eles apóiam o segundo, o concorrente. Por exemplo, Argentina e Chile, já preparados para nos trair.
Para os americanos, protestantes, amantes do lucro e da riqueza, a vitória é orgulho, honra. Para nós, a vitória traz culpa, medo. Eles amam o sucesso. Nós, católicos educados para a obediência e dependência do Rei, cultivamos o fracasso, flor inculta e ibérica.
Lá, todos os aparelhos do Estado, desde o presidente até os faxineiros do Capitólio, democratas ou republicanos, tudo visa a fazer comércio, a vender produtos, a conquistar mercados. Nós, para disfarçar nosso medo colonial, nossa passividade, consideramos a política uma coisa "abstrata", achamos o comércio até uma atividade "pouco nobre", impura para bacharéis e subliteratos.
Eles, por seu lado, também falam em abstrações e generalidades ideológicas, mas só para dissimular a busca incessante de lucro e poder. No World Bank e no FMI falam em "bem comum", em "saúde" da economia ocidental, para impor segurança a seus interesses internacionais. Nosso destino está em jogo. Podemos morrer na praia do século 21.
Para negociar com os americanos, precisamos urgentemente aprender a negociar como os americanos.


Texto Anterior: Teatro: Clarisse Abujamra e Milhem Cortaz iniciam ciclo sobre o papel do ator
Próximo Texto: Panorâmica - Música: Sinfônica do Estado faz audição para coro
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.