São Paulo, segunda-feira, 17 de abril de 2006

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CINEMA

"Vitória do bem é a denúncia", diz Nelson Pereira dos Santos, cujo novo filme, "Brasília 18%", estréia nesta sexta

"O máximo que se pode fazer é denunciar"

Divulgação
O diretor entre Malu Mader e Riccelli; filme estréia nesta sexta-feira


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL


O cineasta Nelson Pereira dos Santos desembarcou em Brasília junto com o governo Luiz Inácio Lula da Silva, no início de 2003.
Pretendia filmar, sob encomenda de um canal de TV francês, os cem primeiros dias do ex-operário Lula da Silva no poder, para um documentário histórico.
O projeto não foi adiante, mas o cenário de Brasília fez o cineasta recordar que tinha na gaveta um roteiro (ou melhor, 1/4 de roteiro) com uma história ambientada ali.
"Brasília 18%" saiu do papel e chega às telas na próxima sexta. O fio da história, que existia desde o início, é o desaparecimento de uma assessora parlamentar que namora um cineasta.
Quando um corpo é encontrado -no auge da seca e da baixa umidade (18%), época em que afloram os cadáveres de Brasília-, a trama move de Hollywood para o Distrito Federal um legista encarregado de determinar se a ossada pertence à jovem desaparecida.
Mantido esse mote, Nelson Pereira recheou seu filme com uma crônica da atualidade política do Planalto Central. Em torno da jovem assessora Eugênia (Karine Carvalho), do legista Olavo Bilac (Carlos Alberto Riccelli) e do cineasta Augusto dos Anjos (Michel Melamed), abre-se um enredo de corrupção, suborno, festas de lobistas, sexo casual e CPIs.
Além de Bilac e Dos Anjos, outros expoentes da literatura brasileira emprestam seus nomes aos personagens de Nelson Pereira, eleito em março passado imortal da Academia Brasileira de Letras.
"A idéia é buscar grandes nomes do passado para nomear figuras de baixo nível do presente", diz o cineasta sobre sua escolha.
A seguir, o cineasta fala de sua descrença na punição de crimes do colarinho branco. "O máximo que se pode fazer no Brasil é denunciar e repudiar moralmente."
Aos 77, Nelson Pereira dos Santos define-se como "um homem do século 19", que não terá tempo de ver "um futuro mais bonito, mais limpo", embora "não tenha dúvida de que isso vai acontecer".

Folha - O sr. usa uma mulher como pivô de um escândalo político em seu filme. Atrás de todo escândalo em Brasília há uma mulher?
Nelson Pereira dos Santos -
Em toda guerra também, desde Tróia.

Folha - Em seu filme, a pivô do escândalo tenta denunciar um esquema de corrupção e desaparece. Redutos de honestidade tendem ao desaparecimento?
Pereira dos Santos -
Ela é a personagem incógnita; é conhecida pelo que dizem dela. Quando aparece, pode ser uma invenção.
É um personagem inventado por outro personagem [o legista] e pelo roteirista também. A idéia é deixar essa incógnita, principalmente se está viva ou não.
O médico está sempre perguntando: Cadê a minha juventude? Cadê o amor? Cadê a mulher? Cadê Brasília? Cadê a ética? Cadê a esquerda? Cadê muitos valores que foram massacrados?
É só escolher o que cada um está procurando e você tem a visão de alguma coisa que foi violentada nesse processo histórico.

Folha - O sr., imortal da ABL, dá o nome de Machado de Assis no filme a um deputado corrupto, incapaz de formular um discurso. Por quê?
Pereira dos Santos -
A idéia é buscar grandes nomes do passado para nomear figuras de baixo nível do presente. Nessa contradição, é possível ter uma sensação rápida de como perdemos.
O processo [de escolha dos nomes] foi totalmente aleatório. O primeiro personagem [o médico-legista] foi Olavo Bilac, porque tinha [um livro de] Bilac por ali. O segundo foi José de Alencar, mas esse não entrou em campo, porque é o nome do vice-presidente.
Machado eu estava poupando, como poupei também o meu preferido, Castro Alves. Mas, depois dos acontecimentos do PT, eu disse: "É esse". Para a coisa ser mais violentamente contraditória, chocante, escandalosa: "Machado de Assis vai depor na CPI".

Folha - Segue a mesma idéia a transformação dos versos de "Canção do Exílio" em "minha terra tem dinheiro onde canta o dinheirô"?
Pereira dos Santos -
Esse texto é do [ator] Michel Melamed. Passei a bola para ele, por causa da idade. Ele é um jovem dramaturgo, que tem sensibilidade para tratar desse assunto. Eu sou do século 19, ia tratar de uma forma enfática, da denúncia da corrupção. Ele é inventivo e comunica com mais força a idéia dessa denúncia.
A vitória do bem, no caso, é a denúncia. O máximo que se pode fazer no Brasil é denunciar e repudiar moralmente. Prender senador é sonho de uma noite de verão na sociedade brasileira.

Folha - A sucessão de denúncias não termina por anestesiar a opinião pública? Não é isso que explica a popularidade do presidente Lula da Silva, mesmo com tantas denúncias contra seu governo?
Pereira dos Santos -
Vamos falar do filme, não da política brasileira. Não tenho nenhuma autoridade para conversar sobre isso. Mas acho que, apesar de tudo o que está acontecendo, há uma coisa importante, que são as instituições democráticas preservadas.
Esse é o básico para que as coisas melhorem e avancem: a harmonia entre os poderes, a democracia, a Constituição funcionando. Ao longo da minha vida, vi golpes de Estado em razão de corrupção.
Todo golpe de Estado no Brasil partiu da corrupção. Havia a denúncia, e um salvador da pátria aparecia dizendo: "Vamos acabar com a corrupção e resolver a economia". Vinha um golpe de Estado e nós todos pagávamos o pato.

Folha - O sr. apoiou o governo Lula no início. Qual sua posição hoje?
Pereira dos Santos -
Votei no Lula.

Folha - Como se sente o eleitor?
Pereira dos Santos -
Seria bom que todo eleitor tivesse consciência de que ele é o principal agente da democracia. Na hora de votar, tem de pensar 500 vezes, para deixar de ser otário. Não adianta reclamar depois. Tem de pensar antes. Vamos ver o que é oferecido. Qual é o panorama [nas eleições].

Folha - A esquerda ainda existe?
Pereira dos Santos -
Estou perguntando. Saí da esquerda há muitos anos. Havia ainda uma mobilização. Depois, com tudo isso que aconteceu, pulverizou-se. Prefiro a outra pergunta: onde está minha juventude? A esquerda tanto faz que eu perdi. Mas perdi a minha juventude...

Folha - A capacidade de sonhar?
Pereira dos Santos -
De sonhar e de amar, de ter aquela mulher linda. É essa a idéia básica. O filme é uma história de amor.

Folha - Pelo que sugere seu filme, a culpa está indo para os artistas?
Pereira dos Santos -
A idéia do artista [no filme] é que ele está preso. Os recursos para a cultura, para a produção da criação são escassos. E também há toda a prisão da censura, as limitações. Há uma censura imanente. A oficial, legal, dizem que acabou.
Mas nossa sociedade é do tempo que a Igreja fazia parte do Estado. Você acaba sendo o responsável. Se faço um filme sobre prostituição infantil, a culpa é minha. Fiz "Rio, 40 Graus" com os meninos pobres, descalços. Proibiram o filme e queriam me prender.


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