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CRÍTICA/SHOW
Maogani lembra Tom com liberdade
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
O cenário não podia ser
mais bonito: lua cheia no alto, o parque Ibirapuera ao redor e
a língua rutilante de Tomie Ohtake chamando a platéia da entrada
do retilíneo auditório, admirado
pelas curvas da Oca do outro lado.
Niemeyer conversando com Niemeyer como se São Paulo fosse
mesmo assim. Era uma Sexta-Feira da Paixão da música, ritualizada pelo Quarteto Maogani de violões, com seus convidados Mônica Salmaso e Renato Braz.
Em 2004, o Maogani lançou seu
terceiro disco, "Água de Beber"
(Biscoito Fino), dedicado a Tom
Jobim (1927-94) e seu círculo (Radamés Gnatalli, Villa-Lobos e outros). O show do Ibirapuera tomava como base o mote do disco,
mas com muita liberdade.
É verdade que o quarteto tocou
a faixa-título (de Jobim/Vinicius),
tocou seu espetacular arranjo de
"Lamento no Morro" (da mesma
dupla), com a melodia deslocada
para lá e para cá, e tocou também
o irresistível "Frevo de Orfeu"
(idem). E é memoravelmente verdade que Mônica Salmaso -a
deusa do documentário "Vinicius"- cantou "Insensatez",
num arranjo em que melodia e letra
sustentavam a canção e os acordes teciam variações sobre a harmonia original, chegando até a
trocar o modo menor pelo maior
no lugar onde ninguém espera.
Também cantou "A Correnteza" (Jobim/Bonfá) e a valsa "Imagina", primeira composição de
Tom Jobim, que ganharia letra de
Chico Buarque muitos anos depois e que Mônica acaba de gravar
com Chico para o disco novo dele.
Mas o Maogani também tocou
coisas como "Tira Poeira" (Sátiro
Bilhar), "Grau Dez" (Lamartine
Babo/Ary Barroso) e uma suíte de
Joaquim Calado (1848-80, criador
do primeiro conjunto de choro de
que se tem notícia), mais arranjos
de "A Ostra e o Vento" (Chico) e
"Um Abraço no Codó" (Baden
Powell), com o característico trabalho de contraponto e as não
menos características luminosas
harmonias, cintilando em frases
paralelas nas vozes internas.
Com a saída de Marcus Tardelli,
agora em carreira solo, o Maogani
perdeu o violão requinto, que ampliava a gama de agudos, no extremo oposto dos graves do oito-cordas de Paulo Aragão. Em seu
lugar, entrou o gaúcho Maurício
Marques, conhecido pela mistura
virtuosística de música sulina
com choro. Nem tudo o que ele
faz tem a limpeza dos outros três;
mas nada é feito sem uma intenção musicalíssima e apuro, para
ele, é só questão de querer.
No repertório entrava ainda
uma maravilhosa seqüência de
quatro canções com Renato Braz,
que não tinham nada a ver com
Jobim, mas teriam deixado encantado o maestro das "suítes
mateiras". A começar pela "Ave
Maria" de Erotides de Campos
(1896-1945) e a continuar com
coisas tão diferentes como Jackson do Pandeiro (1919-82) e Dori
Caymmi (musicando Fernando
Pessoa). Tudo se explica e tudo se
magnifica na lindíssima voz brasileira de Renato, tenor abaritonado e par perfeito para Mônica, a
mais contralto das sopranos.
Única nota dissonante: a constrangedora exposição de duas
crianças anunciando o show, com
um texto redigido pelo patrocinador: "somos alunos da escola do
Ibirapuera. Nós gostamos da
Tim..." Dá para acabar com isso?
Avaliação:
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