São Paulo, segunda-feira, 17 de abril de 2006

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CRÍTICA/SHOW

Maogani lembra Tom com liberdade

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

O cenário não podia ser mais bonito: lua cheia no alto, o parque Ibirapuera ao redor e a língua rutilante de Tomie Ohtake chamando a platéia da entrada do retilíneo auditório, admirado pelas curvas da Oca do outro lado. Niemeyer conversando com Niemeyer como se São Paulo fosse mesmo assim. Era uma Sexta-Feira da Paixão da música, ritualizada pelo Quarteto Maogani de violões, com seus convidados Mônica Salmaso e Renato Braz.
Em 2004, o Maogani lançou seu terceiro disco, "Água de Beber" (Biscoito Fino), dedicado a Tom Jobim (1927-94) e seu círculo (Radamés Gnatalli, Villa-Lobos e outros). O show do Ibirapuera tomava como base o mote do disco, mas com muita liberdade.
É verdade que o quarteto tocou a faixa-título (de Jobim/Vinicius), tocou seu espetacular arranjo de "Lamento no Morro" (da mesma dupla), com a melodia deslocada para lá e para cá, e tocou também o irresistível "Frevo de Orfeu" (idem). E é memoravelmente verdade que Mônica Salmaso -a deusa do documentário "Vinicius"- cantou "Insensatez", num arranjo em que melodia e letra sustentavam a canção e os acordes teciam variações sobre a harmonia original, chegando até a trocar o modo menor pelo maior no lugar onde ninguém espera.
Também cantou "A Correnteza" (Jobim/Bonfá) e a valsa "Imagina", primeira composição de Tom Jobim, que ganharia letra de Chico Buarque muitos anos depois e que Mônica acaba de gravar com Chico para o disco novo dele.
Mas o Maogani também tocou coisas como "Tira Poeira" (Sátiro Bilhar), "Grau Dez" (Lamartine Babo/Ary Barroso) e uma suíte de Joaquim Calado (1848-80, criador do primeiro conjunto de choro de que se tem notícia), mais arranjos de "A Ostra e o Vento" (Chico) e "Um Abraço no Codó" (Baden Powell), com o característico trabalho de contraponto e as não menos características luminosas harmonias, cintilando em frases paralelas nas vozes internas.
Com a saída de Marcus Tardelli, agora em carreira solo, o Maogani perdeu o violão requinto, que ampliava a gama de agudos, no extremo oposto dos graves do oito-cordas de Paulo Aragão. Em seu lugar, entrou o gaúcho Maurício Marques, conhecido pela mistura virtuosística de música sulina com choro. Nem tudo o que ele faz tem a limpeza dos outros três; mas nada é feito sem uma intenção musicalíssima e apuro, para ele, é só questão de querer.
No repertório entrava ainda uma maravilhosa seqüência de quatro canções com Renato Braz, que não tinham nada a ver com Jobim, mas teriam deixado encantado o maestro das "suítes mateiras". A começar pela "Ave Maria" de Erotides de Campos (1896-1945) e a continuar com coisas tão diferentes como Jackson do Pandeiro (1919-82) e Dori Caymmi (musicando Fernando Pessoa). Tudo se explica e tudo se magnifica na lindíssima voz brasileira de Renato, tenor abaritonado e par perfeito para Mônica, a mais contralto das sopranos.
Única nota dissonante: a constrangedora exposição de duas crianças anunciando o show, com um texto redigido pelo patrocinador: "somos alunos da escola do Ibirapuera. Nós gostamos da Tim..." Dá para acabar com isso?


Avaliação:    


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