São Paulo, terça-feira, 17 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO BONASSI

Monólogo da fritura


Invocaram com nosso nome e nos meteram em inquéritos que a polícia tinha esquecido

VIVIA ESQUECIDO e aposentado desses ares condicionados quando ouvi ao vento o velho chamado patriótico, ou psicótico, da política...
Fui chamado como se fosse o único do eleito, ungido por "Ele" mesmo como o maior dentre os competentes e nomeado diligentemente para trabalho dos mais estafantes.
Em cerimônia extravagante, ganhei um cargo de confiança, um encargo espinhoso e um salário garantido para o desafio gigantesco e escandaloso de acordar a esperança de um gigante adormecido.
Recebi as chaves de um apartamento decorado, ganhei verbas para representação de interesses acertados e passagens para aviões abastecidos com assessores concursados e especializados em me proteger de qualquer má exposição em que minha atuação pudesse aparecer.
Pra mim até que seria tudo de bom, não fosse nada mais que muito ruim o fato de ninguém estar imune ao aumento das temperaturas que certas posições obscuras têm o dom de propagar entre os críticos do nosso estilo.
Assim começam a juntar os ingredientes de sua culinária astuta e maldita...
Primeiro nos exibem como vagabundas, com cabelos engraçados, olheiras profundas e poses superficiais em reuniões de especialistas. Depois, alguns especialistas são presos, desautorizados ou desqualificados em imagens esquisitas, mas onde aparecem ao nosso lado, como papagaios do que deveríamos fazer em seu lugar.
Errar, assim, até que erramos, mas errávamos enquanto tentávamos aquecer ou destravar esse tal de desenvolvimento, cuja promessa dá água na boca, mas a memória, dor de estômago e no pensamento.
No âmago disso tudo, invocaram com nosso nome vão e nos meteram em inquéritos que até a polícia tinha esquecido de procurar; justo nós que nem tínhamos mais culpas para administrar com esses prescritos crimes hediondos...
Os jornalistas arrivistas que imploravam por "exclusivas" sequer nos questionam em coletivas e, quando nos vêem cada vez mais magros e abatidos, ainda evitam nos olhar com o devido respeito, como se fôssemos tipos suspeitos, ou que estivéssemos doentes, com uma gripe renitente de se tossir, um troço que se marina para poder se engolir.
Acontece que os uísques para temperar essa situação não são os mesmos de tantos anos, os salgadinhos são gordurosos como os planos requentados que são apresentados e quando os canapés estão servidos, desaparecem num instante, como se todo coquetel importante fosse freqüentado por celebridades de baixo escalão.
Não nos convidam para reuniões urgentes, há gente que nos corta da agenda, nos risca do mapa e deleta nossas mensagens como se não tivéssemos nada a dizer sobre tudo o que se passa e nos passa por cima...
Fomos é muito bem passados nessa espécie de banho-maria dos condenados, nos untaram com os óleos dos proscritos, nos forraram com queijos e com vinhos importados como se fôssemos gansos assassinados para o patê dos frescos... Estes últimos são sempre os primeiros a vir cheirar o vapor inebriante que nos derrete e descarna a todos em fogo brando, só esperando chegar a hora de abocanhar a fritura da nossa carne imatura, mas muito desejada...
Porque nos procuram e desejam como feras! Ah, sim! Têm água na boca! Nunca deixaram de nos querer! Se antes nos queriam para trabalhar, partilhar e cooperar num esforço de equipe, agora querem nos descartar de todos os times, nos jogar numa espécie de reserva, de esquife ou de vitrine onde vêm admirar aqueles que neles causam repug- nância.
E se repugnam me repugnando! Repugnam-se tanto porque, ao nos repugnar, repugnam uns aos outros como a si mesmos, já que estamos aqui a representar os seus próprios -dentre os nossos- interesses mais difíceis, contraditórios ou escusos mesmo...
Como ninguém pode nos perdoar, nos amam com esse amor de odiar!
Amor não se escolhe, mas se pode desquitar... Ou demitir!
Demitir, não nos demitem... Preferem nos apartar, silenciar e denegrir para depois, com a nossa mudez e nudez expostas, nos esfolar, moer e torrar até explodir. E enquanto explodem de tanto rir, nós é que somos os palhaços crucificados pelos bens do picadeiro...
Não se iludam os herdeiros mais otários com essas mágicas que nos fazem desaparecer! Por incrível que possa parecer, os donos do circo serão sempre os mesmos. E nada como um dia após o outro para digerir esse eterno retorno...


Texto Anterior: Festival inaugura primavera francesa
Próximo Texto: Música: Mutantes se apresentam no Sesc Pompéia
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.