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CONTARDO CALLIGARIS
O trauma do amor
Todo amor busca compensar um desastre amoroso passado; somos feridos antes da batalha
NESTES DIAS, reencontrei Gérard Pommier, um colega e
amigo que não via há quase
15 anos. Ele está de passagem pelo
Brasil, palestrando.
Num fim de tarde, sentados na minha cozinha, colocamos a conversa
em dia: filhos, trabalho e, claro, divórcios, separações e novos amores.
No capítulo "divórcios e separações", prevaleceu o tema (tragicômico) das indenizações financeiras.
Como era de se esperar numa conversa entre homens, constatamos a
curiosa contradição entre a reivindicação feminina de autonomia e, por
outro lado, o fato de que muitas mulheres, ao se separarem, exigem uma
reparação monetária.
Por estarmos ambos sóbrios, não
discutimos o fundamento das pensões alimentícias para as crianças
nem o da retribuição pelos anos em
que uma mulher pode ter renunciado à sua vida profissional para se dedicar ao lar. Apenas estranhávamos
o tipo de demanda raivosa que dá a
impressão de pedir indenização pelo amor perdido.
Nos homens como nas mulheres,
os amores que acabam deixam a
sensação de um dano quase físico,
material ("retiraram uma parte de
mim") -um dano, portanto, que poderia ser compensado. Deve ser por
isso que tanto os homens quanto as
mulheres, às vezes, "curam" as dores
de uma separação com aquisições
extravagantes. "Ela me deixou?
Compro uma moto."
Mas as mulheres, freqüentemente, preferem que a reparação do dano seja o ônus do ex-parceiro. Mesmo quando a iniciativa da separação
foi da própria mulher (ou compartilhada por ela) e não houve "infidelidade" do lado do homem, as mulheres tendem a viver a separação como
uma traição, como uma crueldade
que lhes foi feita, uma sacanagem.
Há como explicar essa diferença,
mas isso, hoje, não vem ao caso. O fato é que a conversa com Pommier foi
interrompida porque eu fui assistir
ao filme de Wong Kar-wai, "Um Beijo Roubado", que acaba de estrear.
Pommier, que já tinha visto o filme
na França, prometeu que ele tinha a
maior relação com nossa conversa
daquela noite.
De fato, o filme de Kar-wai é uma
esplêndida elegia sobre o trauma
amoroso. Os quatro personagens
principais são todos inválidos da
guerra das paixões. Ficam num canto lambendo suas feridas ou saem
pelo mundo afora para esquecê-las
ou cicatrizá-las, mas, de qualquer
forma, para eles, um novo amor é a
tentativa de compensar um desastre
passado, que os deixou sem chaves
para as portas da vida.
Para um psicanalista, é um prato
cheio: confirma-se, indiretamente, a
idéia de que nos apaixonamos pelos
outros porque não nos foi permitido
ficar com a mãe e ou com o pai. Todo
amor corrigiria uma grande decepção amorosa, forçada e originária,
todo amor seria um paliativo contra
as dores da renúncia a nossas paixões edipianas. Ou seja, atrás de nossa vida amorosa, sempre há um dano inicial. "Será que alguém paga um
dia?", diriam as mulheres evocadas
na conversa com Pommier.
Tudo bem, mas o complexo de
Édipo, que se tornou sabedoria psicológica comum, não deixa de ser
um mistério. Por que seríamos saudosos de uma única relação que nos
foi proibida para que todas as outras
fossem permitidas? Por que seríamos para sempre queixosos de uma
única perda que nos libertou e nos
soltou pelo mundo?
Mais misterioso: é raro que a lembrança de nossos primeiros afetos
amorosos (com a mãe, especialmente) seja a de um idílio; em geral, ela
vem junto com a queixa de termos
sido, de uma maneira ou de outra,
preteridos ou mesmo traídos. Talvez essa lembrança queixosa seja influenciada pelo que vem depois: a
gente veria nossa primeira infância
pelo prisma das dores da autonomia,
do crescimento e da separação.
Mas talvez haja algo mais, algo que
nos torna feridos antes da batalha,
queixosos de ter sofrido um dano
antes de qualquer amor, inclusive
antes daquela primeira relação, miticamente feliz, com a mãe.
Talvez a sensação de que fomos
traídos, e não nos foi dado o que queríamos e esperávamos anteceda o
amor e suas frustrações. Talvez todos os amores, inclusive o edipiano,
sejam apenas compensações frustrantes por um dano que, aliás, inevitavelmente, eles renovam.
Mas de que dano estou falando?
De qual sensação originária de que o
mundo sempre nos priva porque
nunca responde à altura de nossos
pedidos?
A resposta seria complicada e incerta, mas há um atalho. Pergunte
para qualquer jovem mãe esbaforida: "Afinal, o que quer um bebê?".
ccalligari@uol.com.br
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