São Paulo, sábado, 17 de maio de 2008 |
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Autor finta clichês e pega touro a unha
José Miguel Wisnik dribla obviedades sociológicas para interpretar o futebol no Brasil em sua vastidão de sentidos
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES EDITOR DA ILUSTRADA Com "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil", o professor de literatura da USP, músico e ensaísta José Miguel Wisnik aplica um chapéu nos clichês e preconceitos comumente associados ao esporte mais popular do mundo e parte em direção à meta: interpretá-lo em seus múltiplos significados e sentidos, desde o jogo propriamente dito, com sua gramática e tempo peculiares, aos fortes laços que veio a estreitar com a cultura brasileira, ganhando aqui desenho próprio, mais elíptico e não-linear. Em 448 páginas, o autor enfrenta uma miríade de temas, personagens e situações, que vai do goleiro ao juiz, de Garrincha a Ronaldo, de Machado de Assis a Pelé, de Macunaíma a Parreira, de Gilberto Freyre à sociologia uspiana, sem esquecer as sugestões de Pier Paolo Pasolini, o cineasta italiano que viu prosa no futebol europeu e poesia no brasileiro. Wisnik não usa para isso uma teoria geral que emoldure e prenda a bola num quadro de uma perspectiva só. Joga, como diz na entrevista ao lado, com dados estéticos, literários e psicanalíticos para fazer o que pedia aquela espanhola da marcha de Braguinha, cantada em coro, em 1950, no Maracanã -"pegar o touro a unha". O touro é o futebol, mas também o Brasil e as ambivalências das interpretações acerca de sua formação, de sua cultura e de seu futuro, ora a enfatizar suas potencialidades negativas, ora as positivas, num arco que vai do entusiasmo profético com a nação às afirmações derrisórias sobre seus fracassos. Interpretações do Brasil Veneno remédio é uma idéia contida na palavra grega "fármacon", poção que pode curar ou matar. É a "força que revira em seu contrário, o mesmo que se transforma em outro, o avesso do avesso", escreve Wisnik. Nas visões clássicas sobre o Brasil, discutidas no capítulo mais teórico do livro, o que é veneno para um torna-se remédio para outro. Aquilo, por exemplo, que na sociologia uspiana é uma fórmula quase fatal -os efeitos e defeitos da colonização escravista portuguesa na periferia capitalista-, vira remédio na reversão de Gilberto Freyre, que aposta no desqualificado povo miscigenado e lança a mestiçagem como novidade civilizatória. Embora inspire-se na cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda, na dialética da malandragem de Antonio Candido e no Brás Cubas de Machado de Assis (com seu emplasto que mata quando deveria ser panacéia), é com o autor de "Casa-Grande & Senzala" que o conceito de veneno remédio parece ganhar amplitude na análise de Wisnik, dando-lhe mais gás para fintar a sociologia convencional de esquerda e falar, de maneira imaginosa, inteligente, não raro poética, sobre as interpenetrações de escravidão, futebol e cultura no Brasil. Fino para não entrar de sola, o autor também sabe ir duro na bola, rechaçando investidas como as do filósofo Paulo Arantes que, em seu "júbilo hipercrítico", procura "reduzir em massa a singularidade brasileira à sintomatologia do "cronicamente inviável'". Freyre, em campo oposto, realizaria uma inversão que já estava configurada no modernismo -"devorar a dimensão assustadora do outro, transformar "tabu em tótem", virar o recalque de ponta-cabeça e converter os próprios entraves traumáticos da formação brasileira em fermento libertador". É o mestre de Apipucos (que ainda desperta resistências uspianas) quem aponta a submissão do "anguloso futebol anglo-saxão" ao "adoçamento curvilíneo" do futebol brasileiro, que realiza uma promessa de felicidade talvez sem paralelo em outras esferas da vida do país. VENENO REMÉDIO Autor: José Miguel Wisnik Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 41 (448 págs.) Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Projeto une música e literatura Índice |
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