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ENTREVISTA FERNANDA MONTENEGRO
Fernanda de Beauvoir
Na pele da porta-voz do feminismo, Fernanda Montenegro retorna aos palcos e defende uma mulher na Presidência
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Daryan Dornelles/Folha Imagem
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A atriz durante entrevista, no Rio, na quarta-feira passada
LUCAS NEVES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
"O ator é o demônio que dá
passagem a outra entidade esquizofrênica dentro dele", costuma dizer Fernanda Montenegro, 79, aos jovens intérpretes que lhe perguntam como se
constrói um personagem.
Quem a vê em cena, no monólogo "Viver sem Tempos
Mortos", na pele da porta-voz
do feminismo, Simone de
Beauvoir (1908-1986), e depois
conversa com ela "à paisana"
sobre a peça que estreia em São
Paulo nesta quinta entende
perfeitamente a descrição. Sob
o sol forte da tarde de outono,
há em Fernanda um rastro palpável da filósofa francesa.
A ternura com que, no palco,
Beauvoir recorda os primeiros
encontros com o futuro companheiro Jean-Paul Sartre é análoga à de Fernanda ao falar,
num sorriso saudoso, do começo do casamento com Fernando Torres, morto em 2008.
"Numa pensão na rua Rui
Barbosa [em São Paulo], em 54,
comendo bife estorricado com
folha de alface e vinagre, a gente sonhava com uma companhia de teatro", lembra a atriz.
As percepções da maturidade
também são espelhadas. Em
cena, Beauvoir se surpreende
com a impressão de não ter envelhecido, embora se sinta
"instalada na velhice". Com
maquiagem sóbria, Fernanda
observa que "seria mentiroso
dizer que me sinto melhor do
que quando tinha 20 anos",
mas "os anos dão uma consciência que não tem preço".
Na entrevista a seguir, ela defende a atualidade do discurso
de Beauvoir. Na política, acha
que o Brasil está pronto para
ter uma mulher na Presidência
-sem endossar a candidatura
de Dilma Rousseff. E afirma
que se faz hoje no país apenas o
"teatro possível", por conta das
dificuldades de financiamento.
FOLHA - Oito anos separam sua última peça, "Alta Sociedade" (2001),
de "Viver sem Tempos Mortos". A
que se deve esse longo hiato?
FERNANDA MONTENEGRO - Há dez
anos, "Central do Brasil" estourou. Não tinha como ficar pensando em projeto. Depois, seguiram-se quatro filmes. Mas
nunca deixei de vê-los como
trabalhos teatrais, com origem
no que vivi em cena. E também
passei a gostar de cinema. Mas
ainda não sei fazer.
FOLHA - Como o projeto de montar, com o ator Sergio Britto, uma
peça sobre Anton Tchecov (1860-1904) se transformou em um monólogo sobre Simone de Beauvoir?
FERNANDA - Fomos pelos caminhos mais malucos. Queríamos
primeiro fazer um texto sobre
as cartas do Tchecov para a
[atriz] Olga Knipper [mulher
do autor]. Soubemos que havia
dois textos, ambos na mão de
alguém. Aí o Sergio se lembrou
do Sartre e da Simone, porque
tinha saído o livro "Tête-à-Tête" [biografia do casal]. E são
duas personalidades ligadas à
nossa memória mais jovem.
Comecei a organizar esse material, e o tempo correu: Sergio
estreou com sucesso "A Última
Gravação de Krapp/Ato sem
Palavras 1", de Beckett. De
repente, nos separamos. Fiquei
com a Simone, ele com o
Beckett.
FOLHA - Em que momento entrou
o diretor Felipe Hirsch?
FERNANDA - Tenho um papo
com ele de dez anos para fazermos algo juntos. O problema
maior era se ele via possibilidade naquele texto, porque era
uma compilação de uma compilação, um pequeno trabalho
de uma loja da esquina. Quando
ele disse que o texto daria não
um espetáculo, mas uma encenação sensibilizada, vi que estávamos harmonizados. Aí veio
o processo de achar a encenação. Pusemos mesas, máquinas, cigarro, uísque, remédio...
Esperei a intuição do Felipe. E
ele foi dizendo: "Olha, acho que
isso está sobrando...". Um dia,
ele chegou: "Vou radicalizar,
vou tirar tudo". [A montagem]
É mais uma voz, um roçar, um
arranhar a vida intensa e inesgotável que foi a dessa mulher.
FOLHA - Muito se fala hoje em pós-feminismo, em conquistas femininas consolidadas, espaços sociais e
profissionais ganhos. O discurso de
Beauvoir sobre a igualdade entre os
sexos não parece anacrônico?
FERNANDA - Acho que não, porque o discurso da liberdade e do
autoconhecimento nunca será
algo fora de cogitação. Esse
conceito de liberdade, que é
complexo -até onde você se
aprisiona na sua consciência ou
na sua neurose?-, traz um mistério que uma teoria radicalizada muitas vezes não quer ver.
FOLHA - Beauvoir defende que a
mulher seja entendida segundo parâmetros próprios, e não masculinos. Num país como o Brasil, em que
ainda resiste o machismo, é possível
pensar em uma mulher presidente?
FERNANDA - Ah, completamente. Não que eu esteja endossando ou não a [candidatura da ministra da Casa Civil] Dilma
[Rousseff]. É interessante não
quando a mulher vem para o
poder no velho esquema, de
substituir o homem no seu
temperamento de agir. A gente
está esperando que as mulheres que chegarem ao poder tenham pelo menos o sentimento
do feminino à frente de qualquer outra coisa, e não que sejam imitações acentuadas,
mais contundentes do homem.
FOLHA- E qual seria essa marca do
feminino no poder?
FERNANDA - É um sentimento.
Tem algo na mulher que é o seu
olhar para as entranhas. O homem é um pau levantado para o
horizonte. A mulher, não. Ela é
incubada, obrigada a entrar em
contato com o interior do seu
sexo todo mês, tem esse ventre.
Isso não quer dizer que vá ser
mole, que a delicadeza não possa ser absolutamente poderosa.
FOLHA - O que mudou no ofício de
ator desde que a sra. começou no radioteatro (em meados dos anos 40)?
FERNANDA - A fase áurea foi a
chegada [nos anos 30 e 40] de
encenadores europeus que tinham boa formação acadêmica, como Ziembinski. Eles formaram uma frente de encenadores com capacidade de ir à
geração seguinte. A partir de
certa hora, com a contracultura
e o domínio dessa segunda geração, aquela disciplina de corpo de balé, de companhias ensaiando 12 horas foi perdendo
força. Surgiram grupos de criatividade mais comunal, de um
jogo menos acadêmico. Hoje,
por causa do processo econômico do teatro, temos o teatro
que se pode fazer. Para se concretizar o processo de presença
artística, vamos para os monólogos. Não se faz isso porque a
gente queira estar sozinho em
cena. É o teatro possível.
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