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Comentário
O desespero da diversão incomoda
É como se a regra da Virada fosse assistir a todos os shows, beber todas as cervejas e estar presente em todos os lugares
MÁRIO BORTOLOTTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ealgo me dizia que não
devia ou que não conseguiria. Quando me pediram pra escrever um texto
com minhas impressões sobre
a Virada, pensei: "Mas eu vou
participar disso?"
Saí anteontem de casa por
força de compromissos profissionais. Tinha um show pra fazer com a banda Saco de Ratos e
uma apresentação da peça
"Música para Ninar Dinossauros". Não fosse por esses compromissos, não teria colocado o
nariz pra fora do meu "bunker-kitchenette" nem para aspirar
o doce ar da noite paulistana (e
isso não é nenhuma ironia),
que anteontem estava por demais aflitiva, aumentando em
escalas assustadoras minha
crescente agorafobia.
Talvez ainda esteja longe de
me tornar um antissocial, mas
tenho de confessar que já não
me sinto à vontade em lugares
apinhados, mesmo sabendo
que tenho de atravessar o viaduto do Chá na hora do rush
três dias por semana. Acho que
a Virada tem tido um efeito positivo nas pessoas que assistem
aos shows -e também nos artistas que trabalham. Então, este não é um texto antiVirada. É
simplesmente minha "trip"
personalíssima e atual.
Minha retirada exclusivamente voluntária se baseia na
ideia de que não consigo me divertir onde muitas pessoas buscam desesperadamente fazer o
mesmo. E é justamente esse
"desespero" que me incomoda.
A diversão não me incomoda,
muito pelo contrário. Gosto de
me divertir e gosto de ver as
pessoas se divertindo.
Mas o desespero me incomoda, e a alegria se revela paradoxal, como se fosse necessário
assistir a todos os shows, beber
todas as cervejas e estar onipresente nos lugares. E, obrigatoriamente, se divertindo muito.
Essa é a regra, não é?
Me parece um reflexo do tipo
de aflição que nos persegue
atualmente. Nossos trabalhos
são tão chatos, nossas opções
de vida se mostraram tão insatisfatórias e a diversão é tão rara que agora nos sentimos obrigados a usufruir da maneira
mais violenta possível nas ocasiões em que ela se manifesta.
Foi o que melancolicamente
senti anteontem à noite enquanto procurava desviar da
multidão apressada para proteger meu braço recém-operado
e revestido de titânio.
Vendo as pessoas tomadas
por uma alegria forçosamente
intensa e por uma espontaneidade que me remete a festas lisérgicas, fui ficando irreversivelmente desanimado. Minha
alma frouxa foi se acabrunhando de maneira terrível, e tudo o
que eu queria era alguma espécie de fuga, um retiro voluntário, um exílio pré-determinado.
Algum tipo de paz.
Coliseu moderno
Talvez tenha a ver com a idade, ainda preciso pensar nisso,
pra não parecer leviano com
minhas próprias atitudes. Mas
enfim: o que sei é que talvez seja necessário fazer uma reflexão maior.
Hoje, nós temos os quatro
dias de Carnaval, o futebol de
domingo, o chope do sábado à
tarde. Na Roma Antiga, era o
Coliseu, uma espécie de válvula
de escape da multidão que, pelo
menos em uma hora ou duas, se
sentia aliviada vendo leões devorando cristãos ou gladiadores tendo as cabeças decepadas.
Não vou simplesmente virar
meu polegar pra baixo ao falar
da Virada, mas também não
vou fazer o sinal de positivo.
Continuo achando que há algo
estranho numa sociedade que
precisa "desesperadamente" se
sentir aliviada e feliz por algumas horas. Não deveria esse ser
um direito nosso o ano todo?
MÁRIO BORTOLOTTO é ator, diretor e dramaturgo; em dezembro de 2009, foi baleado num
assalto a um teatro na praça Roosevelt, centro
de São Paulo
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