São Paulo, segunda-feira, 17 de junho de 2002

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MÚSICA

Mônica Salmaso e o grupo da Acari apresentaram composições de Cascata e de Pedro Amorim e Teresa Cristina

Mas como é alegre a tristeza do choro

ARTHUR NESTROVSKI

ARTICULISTA DA FOLHA

Era o compositor Franz Schubert quem dizia que nunca tinha ouvido "música alegre". Mas Schubert nunca ouviu um choro, nem muito menos "o novo no choro do Rio", ao contrário dos alegres privilegiados na platéia do Sesc Ipiranga, sexta-feira, para escutar Mônica Salmaso e o pessoal da Acari: Luciana Rabello, Maurício Carrilho, Pedro Amorim, Jorginho Silva e Iura Ranevsky, lado a lado com os chorões paulistanos Proveta e Toninho Carrasqueira.
Como é triste essa alegria. Os cromatismos do choro, todo o Chopin que tem por dentro, fazem até a exuberância gingada do "Choro Cubano" de Maurício Carrilho carregar sua dose de afeto invertido. Mas como é alegre a tristeza do choro, também, e a nostalgia boa de uma peça como a "Serenata pro Pilger" dá uma coisa por dentro que deixa a gente no limite de dizer bobagem.
Mas não é bobagem: essa tristeza e essa alegria estão no fundo de uma das versões, pelo menos, do que cada um de nós reconhece como identidade. Que há mais versões, a própria Mônica Salmaso (em parceria com o produtor Homero Ferreira) vem ensinando melhor que ninguém nesta série "Ponto In/Comum", na qual recebe convidados das mais diversas águas. É um momento glorioso da música brasileira, num nível de criação e realização que já deveria ser motivo de orgulho nacional.
Duplo orgulho, aliás. Por esses músicos serem quem são; e pelos projetos que têm a ciência de inventar. ("Gaia ciência", diria um grande chorão da Alemanha.) Para quem está de ouvidos abertos, hoje, a impressão geral é que nunca houve tamanho esforço de resgate e renovação da nossa música popular. Vejam o que o Acari vem fazendo, por exemplo. Maurício Carrilho e companheiros acabam de lançar nada menos do que 15 CDs de uma coleção "Princípios do Choro" (selo Biscoito Fino), reunindo 215 músicas de 50 compositores nascidos até 1870.
Tocaram três delas no fim do show, e o efeito foi lindo: a música dos antigos soa agora como mãe e filha do repertório novo. "Meus cantos... são só ressonância/ Das mais belas e eternas canções/ Que eu ouvi na infância", diz a letra de Paulo César Pinheiro para "Velhos Chorões" (Luciana Rabello), que Mônica cantou antes, sem saber que naquele momento, observada com carinho por Schubert e todos os deuses, ela era a melhor cantora do mundo.
E "Minha Palhoça"? O clássico de Cascata encontrou seu destino, afinal, nesse trio de voz, clarinete e pandeiro. Pandeiro de Jorginho, que incrivelmente, impossivelmente, tocou a harmonia. Ou foi o que se ouviu, com o ouvido de dentro, estimulado pelas melodias bachianas do Proveta. Mônica marota, encenando canto e comentário ao mesmo tempo. E os passarinhos assobiados de Toninho Carrasqueira para completar a obra-prima de bom humor e bem-estar.
A platéia pediu "Lavoura" (Pedro Amorim e Teresa Cristina) no bis. E a dor de amor, às "quatro da manhã", foi um feliz martírio. Pergunta para o professor Nietzsche: "Como é possível escrever música tão estilizada, tão consciente de todas as fontes, tão à vontade com as formas -e ainda assim dizer a verdade? Resposta: "Como assim, "ainda assim'? Existe outro jeito? Já vi que você não entende nada de choro".
A arte é longa. Não pense que esses baixos do violão de Maurício Carrilho estão aí, ao alcance de qualquer um. Nem os acentos súbitos, palheta para cima, de Luciana Rabello, que nesses momentos se permite uma faísca no rosto de impassível seriedade. Dignidades de cavaquinhista, parentes das melancolias de verão do bandolim de Amorim. Agora tente tocar violoncelo no choro, como Ranevsky.
A vida é tristemente breve. Mas alegremente nem tão breve assim. Assistir ao que Mônica Salmaso vem inventando para si, na generosidade bonita e lúcida de suas parcerias, já nos justifica a todos como seus contemporâneos. E é bom lembrar que isso é só o início, para uma artista que mal passou dos 30 anos. No meio do caminho, é um conforto e tanto saber que a gente tem essa cantora conosco, para inventar e reinventar a música pelo resto da vida.
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