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São Paulo, terça-feira, 17 de junho de 2003

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FERNANDO BONASSI

Coisa de louco, coisa de louco

Acordava no terceiro apito do despertador chinês. Dava um tapa. Ficava na cama mais dez minutos, pra depois tropeçar até o banheiro. Lavava o rosto, escovava os dentes, vestia-se, sentava-se na cabeceira da mesa junto do calor do fogão, molhava dois pedaços de pão com margarina salgada sem miolo num copo americano de café com leite. Apanhava documentos, chaves, beijava a mulher e o casal de filhos com a boca adocicada.
Saía pro trabalho. Não fumava. Pegava o ônibus das seis e 45. Descia do ônibus às sete e 40, dizendo "Obrigado" ao motorista (que nunca respondia "De nada" ou coisa parecida). Batia cartão às sete pras oito.
Dava bom dia a quem aparecesse (a isso, normalmente, respondiam). Preenchia dois relatórios de estoque e mandava repor o que faltava com cinco telefonemas. Almoçava 420 gramas no quilo. Pela frequência, ganhava sobremesa e um copo de suco grátis (de maracujá). Fazia digestão num banco de praça, com a barriga no sol.
Escovava os dentes. À tarde, mais três relatórios e nove telefonemas. Voltava pela mesma calçada até o ponto de ônibus. Pegava o das sete e 15. Chegava em casa. Lamentava o descuido do jardim. Tomava banho. Jantava com o arroz do lado direito, o feijão do lado esquerdo e as misturas no centro, arranjados pela mulher. Não tinha suco ou sobremesa. Escovava os dentes. Assistia a duas horas e meia de televisão.
Dormia de bruços. Podia ter sexo, a cada 15 dias. De sexta-feira, depois que as crianças deitavam. No escuro. Em silêncio.
Durante 13 anos viveu assim, sem tirar nem por. Nos finais de semana até que tinha outras ocupações, mas eram idênticas todas, como se os sábados e domingos se juntassem uns nos outros, feito se engatavam iguais os dias da semana. Uma manhã, de repente, percebeu que o seu corpo havia se rebelado. Não com violência. Nem tinha outros desejos.
Apenas se deu conta de que, por menos que quisesse, estapeava o maldito despertador chinês no terceiro aviso, ganhando mais dez minutos de preguiça; que suas pernas trançadas o levavam até o banheiro e que as suas mãos enchiam-se de água pra logo em seguida esfregarem-se no rosto, tirando-lhe o torpor do sono.
Sem querer ainda, metia-se nas roupas: a calça era trazida até a cintura e afivelada no cinto; as costas se deixavam abraçar pela camisa; os pés escorregavam pras meias e sapatos impreterivelmente. No calor da mesa, não podia evitar e, preocupado, misturava quatro centímetros de café com cinco de leite quente, precisamente, atingindo a temperatura ideal (de sempre). Assustado, adoçava com as mesmas três colheres de chá. Trêmulo, mexia 12 vezes.
Em pânico, tornava a arrancar o miolo do pão e passava a lâmina salgada da margarina. Alisava de um lado e de outro (duas pra lá, duas pra cá). Tentava reagir, mas acabava mergulhando aquilo no copo e, enojado, levava pingando aos lábios. Mastigava a pasta, engolia. Tentava o quanto podia se prender a essa mesa de família, mas era inútil.
Poucos segundos depois preenchia o bolso com a carteira, prendia-se no chaveiro, enfileirava a mulher e os filhos pra beijar.
Era levado à porta, atravessava o pequeno jardim de mato selvagem diante do sobrado e seguia pro ponto. Chegou a comprar um maço de cigarros (que ficou intacto por três meses, até ser jogado fora). Diante do ônibus escancarado, ainda tentava se agarrar naqueles ferros e se empurrar pra outro lugar, mas seu corpo o colocava pra dentro, pagava a passagem e o levava até a porta do escritório. Era obrigado a dizer "Obrigado" sem resposta. Era automático com os bons dias, ao que seguiam-se as respostas.
Na mesa, diante dos formulários, pensava ter outra chance. Pensava... Dois relatórios eram preenchidos sem que pudesse evitar. As canetas e os papéis estavam ali, e o trabalho simplesmente se fazia. Com cinco telefonemas medidos, restabelecia o estoque anterior.
No almoço, por mais variada a comida que pegasse, o peso e o preço eram sempre os mesmos. E lá estava o copo de suco e o de gelatina e o dinheiro diante do dono do restaurante e o troco e os sorrisos. Como o cansaço também o vencia, digeria sentado na praça, aquecendo a barriga ao sol do meio-dia. Seguia assim até o final do expediente, lutando cada vez mais contra essa força que preenchia os três relatórios vespertinos, dava os nove telefonemas de ordens e o mantinha naquela calçada, na exata direção contrária, até o ônibus de volta.
O jardim largado, o banho tomado, a cara no espelho suado, a toalha puída esfregada, o jantar arrumado no prato pela mulher.
A mulher e as crianças espalhadas no sofá, a luz da televisão jogando as sombras azuladas nas paredes. O sexo permanecia escuro e quinzenal e mudo. O corpo encontrando a posição, com a cara esmagada no travesseiro. A noite preta de sonhos. Desesperado, decidiu se internar, mas não conseguiu sair do caminho pra procurar um médico que fosse.
Tentou falar com os seus, em casa e no trabalho, mas as palavras certas lhe fugiam nos instantes. Nos finais de semana, continuava forçado a repetir seu lazer. Por fim, decidiu se matar, mas, embora tivesse mãos hábeis, havia umas tantas coisas que elas se recusavam a fazer. Desde então ficou refém dessa persistência terrível. Está, por assim dizer, "Obrigado" a isso. É à vista de todos. Quem quiser pode vê-lo agora mesmo, nessa mesma rua. Basta abrir a janela, puxar a cortina alguns centímetros, e ele estará lá, indo ou vindo da mesma coisa, apesar dele próprio.


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