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FERNANDO BONASSI
Coisa de louco, coisa de louco
Acordava no terceiro apito do despertador chinês.
Dava um tapa. Ficava na cama
mais dez minutos, pra depois tropeçar até o banheiro. Lavava o
rosto, escovava os dentes, vestia-se, sentava-se na cabeceira da
mesa junto do calor do fogão, molhava dois pedaços de pão com
margarina salgada sem miolo
num copo americano de café com
leite. Apanhava documentos,
chaves, beijava a mulher e o casal
de filhos com a boca adocicada.
Saía pro trabalho. Não fumava.
Pegava o ônibus das seis e 45. Descia do ônibus às sete e 40, dizendo
"Obrigado" ao motorista (que
nunca respondia "De nada" ou
coisa parecida). Batia cartão às
sete pras oito.
Dava bom dia a quem aparecesse (a isso, normalmente, respondiam). Preenchia dois relatórios de estoque e mandava repor o
que faltava com cinco telefonemas. Almoçava 420 gramas no
quilo. Pela frequência, ganhava
sobremesa e um copo de suco grátis (de maracujá). Fazia digestão
num banco de praça, com a barriga no sol.
Escovava os dentes. À tarde,
mais três relatórios e nove telefonemas. Voltava pela mesma calçada até o ponto de ônibus. Pegava o das sete e 15. Chegava em casa. Lamentava o descuido do jardim. Tomava banho. Jantava
com o arroz do lado direito, o feijão do lado esquerdo e as misturas no centro, arranjados pela
mulher. Não tinha suco ou sobremesa. Escovava os dentes. Assistia
a duas horas e meia de televisão.
Dormia de bruços. Podia ter sexo, a cada 15 dias. De sexta-feira,
depois que as crianças deitavam.
No escuro. Em silêncio.
Durante 13 anos viveu assim,
sem tirar nem por. Nos finais de
semana até que tinha outras ocupações, mas eram idênticas todas,
como se os sábados e domingos se
juntassem uns nos outros, feito se
engatavam iguais os dias da semana. Uma manhã, de repente,
percebeu que o seu corpo havia se
rebelado. Não com violência.
Nem tinha outros desejos.
Apenas se deu conta de que, por
menos que quisesse, estapeava o
maldito despertador chinês no
terceiro aviso, ganhando mais
dez minutos de preguiça; que suas
pernas trançadas o levavam até o
banheiro e que as suas mãos enchiam-se de água pra logo em seguida esfregarem-se no rosto, tirando-lhe o torpor do sono.
Sem querer ainda, metia-se nas
roupas: a calça era trazida até a
cintura e afivelada no cinto; as
costas se deixavam abraçar pela
camisa; os pés escorregavam pras
meias e sapatos impreterivelmente. No calor da mesa, não podia
evitar e, preocupado, misturava
quatro centímetros de café com
cinco de leite quente, precisamente, atingindo a temperatura ideal
(de sempre). Assustado, adoçava
com as mesmas três colheres de
chá. Trêmulo, mexia 12 vezes.
Em pânico, tornava a arrancar
o miolo do pão e passava a lâmina salgada da margarina. Alisava de um lado e de outro (duas
pra lá, duas pra cá). Tentava reagir, mas acabava mergulhando
aquilo no copo e, enojado, levava
pingando aos lábios. Mastigava a
pasta, engolia. Tentava o quanto
podia se prender a essa mesa de
família, mas era inútil.
Poucos segundos depois preenchia o bolso com a carteira, prendia-se no chaveiro, enfileirava a
mulher e os filhos pra beijar.
Era levado à porta, atravessava
o pequeno jardim de mato selvagem diante do sobrado e seguia
pro ponto. Chegou a comprar um
maço de cigarros (que ficou intacto por três meses, até ser jogado
fora). Diante do ônibus escancarado, ainda tentava se agarrar
naqueles ferros e se empurrar pra
outro lugar, mas seu corpo o colocava pra dentro, pagava a passagem e o levava até a porta do escritório. Era obrigado a dizer
"Obrigado" sem resposta. Era automático com os bons dias, ao que
seguiam-se as respostas.
Na mesa, diante dos formulários, pensava ter outra chance.
Pensava... Dois relatórios eram
preenchidos sem que pudesse evitar. As canetas e os papéis estavam ali, e o trabalho simplesmente se fazia. Com cinco telefonemas
medidos, restabelecia o estoque
anterior.
No almoço, por mais variada a
comida que pegasse, o peso e o
preço eram sempre os mesmos. E
lá estava o copo de suco e o de gelatina e o dinheiro diante do dono do restaurante e o troco e os
sorrisos. Como o cansaço também
o vencia, digeria sentado na praça, aquecendo a barriga ao sol do
meio-dia. Seguia assim até o final
do expediente, lutando cada vez
mais contra essa força que preenchia os três relatórios vespertinos,
dava os nove telefonemas de ordens e o mantinha naquela calçada, na exata direção contrária,
até o ônibus de volta.
O jardim largado, o banho tomado, a cara no espelho suado, a
toalha puída esfregada, o jantar
arrumado no prato pela mulher.
A mulher e as crianças espalhadas no sofá, a luz da televisão jogando as sombras azuladas nas
paredes. O sexo permanecia escuro e quinzenal e mudo. O corpo
encontrando a posição, com a cara esmagada no travesseiro. A
noite preta de sonhos. Desesperado, decidiu se internar, mas não
conseguiu sair do caminho pra
procurar um médico que fosse.
Tentou falar com os seus, em casa e no trabalho, mas as palavras
certas lhe fugiam nos instantes.
Nos finais de semana, continuava
forçado a repetir seu lazer. Por
fim, decidiu se matar, mas, embora tivesse mãos hábeis, havia
umas tantas coisas que elas se recusavam a fazer. Desde então ficou refém dessa persistência terrível. Está, por assim dizer, "Obrigado" a isso. É à vista de todos.
Quem quiser pode vê-lo agora
mesmo, nessa mesma rua. Basta
abrir a janela, puxar a cortina alguns centímetros, e ele estará lá,
indo ou vindo da mesma coisa,
apesar dele próprio.
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