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FERREIRA GULLAR
Crase escondida
O líder radical tornou-se uma personalidade ambígua, com um discurso ambivalente
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LULA É uma figura especial.
Acredito que, depois de se tornar presidente, revelou outros
lados de sua personalidade, que eu,
pelo menos, desconhecia. Até onde
posso inferir de sua presença no cenário político nacional, em mais de
20 anos de atuação à frente do PT,
impôs-se como um líder radical,
identificado com as posições de esquerda, que prometia uma revolução na vida política nacional. Se, nos
começos do PT, eu simpatizava
-ainda que fazendo restrições-
com ele e seu partido, fui aos poucos
me tornando um observador mais
crítico que simpático, devido a seu
radicalismo crescente e à falta de
projeto para o país.
Aos poucos, Lula e o PT se caracterizaram como um movimento sectário, que se opunha a todos os governos e a todas as propostas, mesmo aquelas que trariam indiscutíveis benefícios para a nação, tais como a criação do Fundeb e a Lei de
Responsabilidade Fiscal. A imagem
que Lula passava para a opinião pública era de um líder raivoso e sectário, capaz de apoiar todo e qualquer
ato de contestação do poder constituído. Lembro-me de uma declaração sua a respeito da greve da Polícia
Militar da Bahia, respaldando os policiais amotinados em flagrante violação da lei e da autoridade do governador que, embora legitimamente
eleito, não era aliado do PT.
Tudo isso fez com que a perspectiva da eleição de Lula para a Presidência da República, em 2002, assustasse as classes conservadoras e
particularmente o empresariado
nacional e internacional. Embora
Lula, àquela altura, procurasse atenuar sua imagem de líder radical,
nem todos acreditaram nisso, do
que resultou a grave crise econômica que abalou a economia brasileira
naquele ano. Eleito e empossado,
Lula rejeitou o apoio do PMDB (ao
contrário de agora) e armou um esquema para manter-se no poder por
20 anos, conforme palavras ditas naquela época por José Dirceu, então
chefe da Casa Civil da Presidência.
Esse esquema consistia em aparelhar a máquina do Estado e comprar
com dinheiro vivo o voto dos deputados da base aliada. Quando o esquema furou e o escândalo eclodiu,
Lula, que já vinha mudando de figura, revelou então uma nova personalidade: o líder radical, que já tinha se transformado no Lulinha paz e
amor, tornou-se uma personalidade
ambígua, com um discurso igualmente ambivalente e difuso.
Não pretendo realizar aqui uma
radiografia psicológica da Lula, mas
não há dúvida que, ao se tornar presidente, incorporou um outro personagem, que possivelmente já existia nele. Esse personagem, que mistura ambição de poder e megalomania, sofreu uma situação inesperada
e difícil, durante a crise de 2005,
quando a sucessão de escândalos
comprometia, uma a uma, as figuras
mais importante do governo e do estado-maior petista, todos amigos
seus, companheiros de primeira hora que o ajudaram a fundar o PT e
juntos seguiram até a conquista da
Presidência da República. Posta a nu
a verdadeira natureza da organização que prometera moralizar a política brasileira, Lula sentiu o chão fugir-lhe sob os pés. Mas tinha um argumento a seu favor: se os companheiros denunciados o envolvessem
no escândalo, seria a desgraça de todos sem apelação. Assim, de Dirceu
a Genoino, de Delúbio a Silvinho, todos juraram que Lula não sabia de
nada. E entregaram o pescoço à guilhotina. (que era cega, aliás).
Lula salvou-se mas não saiu o
mesmo do episódio. Desde então
seu discurso foi se tornando cada
vez mais contraditório e ambíguo.
Sim, porque ele tinha que, a um só
tempo, condenar as falcatruas e desculpar os falcatrueiros, aceitar a evidência dos fatos e sem deixar levantar suspeitas. Ou seja, assobiar e tocar flauta ao mesmo tempo.
É verdade que ele nem sempre
lança mão do discurso caótico. Se a
situação é tranqüila, sua fala é quase
normal mas, se tem que responder a
uma pergunta relativa à agressão
que seu amigo Chávez fez ao Congresso brasileiro, a coisa se complica, já que não pode apoiá-lo nem deseja hostilizá-lo. Mas o discurso de
Lula complicou mesmo foi quando a
Polícia Federal descobriu o envolvimento de seu irmão Vavá com a máfia dos caça-níqueis. Lula disse então: "Sou capaz de duvidar que meu
irmão tenha algum problema". Ou
seja, não é capaz de garantir que não
tenha e duvidar que tenha requer
capacidade. Assim ele nem garante
nem duvida, porque de fato sabia,
como os jornais revelaram depois,
que o irmão tinha "algum problema". Este é Lula de hoje, que não é
contra nem a favor, muito pelo contrário. E me vem à mente um de
meus aforismos: frase torcida, crase
escondida...
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