São Paulo, terça-feira, 17 de junho de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

A ideologia abomina o vazio


Nazir-Ali questiona: quando a comunidade cristã recua, que ideologia tomará o seu lugar?

EXISTEM POUCAS certezas na história política do mundo. Mas existe um fenômeno recorrente que é possível resumir em lei: a ideologia sempre abominou o vazio. E, quando se destroem formas de crença tradicionais (como nas revoluções Francesa ou Russa, por exemplo), um novo dogma acaba por substituir o velho dogma atacado e proscrito.
O fenômeno foi denunciado por Burke, no século 18; por Tocqueville, no século 19; e por Raymond Aron, no século 20. Quando se destroem as "religiões tradicionais", triunfam sempre as "religiões seculares" no seu lugar.
Essa lição básica nem sempre é tolerada por alguns intelectuais modernos, que acreditam genuinamente que uma sociedade se sustenta no vazio. Tradições, crenças ou modos de vida particulares podem ser abolidos sem problema; valores como o "respeito" ou a "tolerância" perante diferentes concepções do bem bastarão para garantir a sobrevivência e o florescimento de uma sociedade "liberal".
É contra essa visão otimista que Michael Nazir-Ali se revolta. Nazir-Ali é bispo da Igreja Anglicana. E, numa nova revista acabada de sair na Europa ("Standpoint", dirigida por Daniel Johnson, filho do historiador Paul Johnson), um artigo longo do bispo de Rochester merece dois minutos de reflexão. Que nos diz Nazir-Ali?
Uma coisa muito óbvia e, de tão óbvia, imensamente polêmica: primeiro, que existe um recuo da "comunidade cristã" desde a década de 60 (fato). Mas Nazir-Ali não fica só nesse truísmo; Nazir-Ali vai mais longe e questiona: quando a "comunidade cristã" recua, que ideologia tomará o seu lugar?
A resposta de Nazir-Ali é clara: na Europa, o recuo da comunidade cristã permite o avanço de ideologias radicais, como o islamismo militante, que cresce entre as comunidade imigrantes, sobretudo na França e na Inglaterra.
As palavras de Nazir-Ali merecem ser ouvidas. E, para complementá-las, aconselho um dos últimos livros de Roger Scruton, "The West and the Rest", que tive o prazer de prefaciar na sua edição portuguesa.
O livro de Scruton pretende anatomizar as relações difíceis entre o "Ocidente" e o "islã", sobretudo à luz dos acontecimentos do 11 de Setembro. Mas para Scruton não será possível entender as tensões entre o "Ocidente" e o "islã" sem olhar, primeiro, para o próprio Ocidente.
E, para Scruton, o que vemos no Ocidente é uma cultura de repúdio que se foi instalando na Europa. Esse repúdio é múltiplo. Começa por ser um repúdio político, visível na forma como o Estado-nação foi sendo atacado por uma construção européia tendencialmente federal, capaz de alienar a soberania dos Estados e o sentimento de pertença fundamental dos povos aos seus países.
A recente vitória do "não" irlandês ao Tratado de Lisboa, que os burocratas de Bruxelas se preparam para desrespeitar, é apenas a expressão do divórcio crescente entre os cidadãos e a União Européia, que apenas pode conduzir à revolta popular.
Mas o repúdio não é apenas político; é também moral. E, em sintonia com Nazir-Ali, Scruton entende igualmente que a crescente desagregação da "comunidade cristã" foi também a desagregação de valores que estruturaram as democracias européias: a dignidade da pessoa humana, por exemplo, foi substituída por um "multiculturalismo" relativista que apenas criou o vazio ideológico que é presa fácil para programas radicais.
É esse vazio que convida as comunidades imigrantes de procedência islâmica a procurarem uma identidade possível na pureza radical dos códigos. A crescente atomização social é uma receita para a alienação e para a violência dos que não se reconhecem nas sociedades de acolhimento. Confrontados com o nada, eles procuram sempre alguma coisa.
As palavras de Scruton e de Nazir-Ali devem ser lidas sem preconceitos e, de preferência, com um mínimo de seriedade intelectual.
Será possível que a desagregação do cristianismo na Europa tenha conduzido os seus imigrantes a uma crescente radicalização islamita? Ou, dito ainda de forma mais específica, seria o cristianismo a barreira cultural que impedia a inundação islamita?
As perguntas não são apenas teóricas; elas adquirem uma dimensão prática quando comparamos o "multiculturalismo" da Europa com a religiosidade da América. E não acham estranho que o radicalismo islâmico triunfe entre os imigrantes da Europa, mas seja praticamente desconhecido entre os imigrantes da América?


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