São Paulo, quarta-feira, 17 de junho de 2009

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MARCELO COELHO

Sombras sobre a USP


Se as "minorias radicais" conduzem o processo, onde estão as maiorias moderadas?


UM GRUPO de provocadores ameaça a ordem e o Estado de Direito. Impossível negociar com extremistas desse tipo, dado o irrealismo de suas reivindicações. Para preservar a paz da comunidade e o império da Lei, a saída é a intervenção de uma força militar.
Esse raciocínio pode ser aplicado, sem grande irrealismo, à crise vivida na Universidade de São Paulo. De fato, há minorias radicais. Tudo indica que é impossível negociar com elas. De fato, a ordem deve ser preservada. Tudo indica que o patrimônio público precisava ser defendido de invasões e quebra-quebras.
Só que a fraseologia não difere muito da que justificou o golpe militar de 1964.
Aquela época tinha seus extremistas, dispostos, por exemplo, a fazer a reforma agrária "na lei ou na marra". Eram, certamente, minoritários na população. Havia uma ordem a ser preservada, e uma legalidade para a qual os movimentos de massa não conferiam grande importância. Só uma intervenção militar daria conta da "baderna".
É triste ver pessoas de belo currículo democrático, notoriamente perseguidas pelo regime militar, apoiando a ocupação da USP pela PM. Sem dúvida, a polícia age agora com autorização judicial e o golpe de 1964 foi, afinal, um golpe.
Do ponto de vista político, entretanto, as situações se assemelham. Como em 1964, muitos "democratas" agora acham que é preciso reprimir pela força as "minorias radicais", contando com o aparato militar para defender a ordem, contra a "baderna".
Este artigo -prometo- será imparcial. Não vejo valor em alguns argumentos do lado contrário. É muita abstração condenar a presença da PM porque a universidade é um local "de pensamento, não de violência", "de ideias, não de barbárie".
A USP é isso, mas não é um jardim peripatético: é também um lugar de trabalho, onde pessoas ganham salário, reclamam, fazem greves, piquetes e invasões.
Piquetes e invasões não são atos isentos de violência, e palavras de ordem não costumam ser obras-primas de reflexão e de pesquisa. De resto, há uma diferença óbvia entre intervenções armadas que se dedicam a sufocar o pensamento e a liberdade de cátedra, e as que se encarregam de reprimir militantes sindicais.
Convocar a PM foi um erro. Só serviu para acirrar, e não pacificar, os ânimos na USP. A retirada da PM é o primeiro passo para a superação da crise.
O problema é saber por que se chegou a esse ponto -em que pessoas respeitáveis acabam achando que "só a PM resolve essa baderna". Quando acontece isso, um sistema de representação e de poder se revela disfuncional. A política deixa de funcionar e a força prevalece.
Se "minorias radicais" conduzem o processo, cabe perguntar onde estão as maiorias moderadas. Deveriam estar presentes nas assembleias (e piquetes) que decidem mobilizações em nome de todos.
Nada mais alienado do que condenar o fato de uma assembleia "de gatos pingados" ter decidido uma greve quando não se participa dela.
Estivesse presente nas assembleias, a "maioria ordeira" da USP negaria legitimidade aos movimentos de reivindicação. Em última análise, prefere delegar a defesa da ordem à PM.
Diante de dezenas de ativistas enraivecidos, quatro policiais (que não são "a repressão", mas têm nome, estado civil e endereço) foram cercados e humilhados moralmente. Quando chegou o reforço, professores, funcionários e estudantes (que têm nome, estado civil e endereço) foram atacados com gás e balas de borracha.
Tudo se desumaniza, porque está em jogo uma contradição estrutural. Temos uma máquina burocrática -a da reitoria e seus órgãos ossificados de decisão- contra uma máquina sindical -que segue a lógica da mobilização de massas.
Acontece que as massas são imaginárias (reduzem-se a uma minoria) e que a estrutura de poder na USP, supostamente defensora da lei e da ordem, é tudo menos democrática. Quando ninguém representa ninguém, ou representa mal, não há negociação humana possível, e a violência prevalece.
O mesmo dilema levou a crises violentas no sistema político brasileiro, tempos atrás. Minorias "extremistas" se iludem com a omissão da maioria "ordeira", que não se dá ao trabalho de mobilizar-se pela "ordem" e pela "moderação". Afinal, tem as tropas a seu dispor.

coelhofsp@uol.com.br


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