São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 2000


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ARIANO SUASSUNA

Elogio do Almanaque

Exatamente na terça, 4 de julho, dia em que publiquei a quase-despedida endereçada a meus leitores do primeiro caderno, chega a minhas mãos a carta de um leitor, João Batista Freire, por coincidência também de Campinas, como Cida Sepúlveda. Dizia o seguinte: "Desde que o senhor passou a escrever uma coluna semanal na Folha, ficou muito mais gostoso ler jornal. Sou assinante desse diário há tanto tempo e poucas vezes vivi uma leitura tão boa como a que faço na sua coluna. Posso mesmo dizer que me apaixonei pelo seu jeito de escrever, mas uma paixão do tipo que mais prefiro: não à primeira vista, mas aos poucos, curtida, sorrateira. Quero lhe dizer que a minha vida é melhor quando leio seus artigos. Pode parecer um exagero, mas não é; a vida vai ficando boa por causa de um amigo, de uma comida, de uma moda de viola, de uma poesia, de tanta coisa, que inclui o seu artigo semanal. Quero lhe pedir uma coisa: porque morei na Paraíba quase nove anos e virei admirador da poesia de cordel, gostaria que o senhor falasse um pouco sobre isso, de preferência, que comentasse sobre o Zé Limeira, meu poeta favorito. Um forte abraço, muito carinhoso. E até a próxima coluna".
Ora, eu tinha dito, na quase-despedida, que não merecia, por parte de ninguém, palavras como as que o Cego Oliveira ouvira de uma admiradora na hora de "esbarrar o toque". Aqui, não se tratava propriamente de esbarrar o toque, mas de mudar-lhe o tom e o tamanho, e a mudança fora, de certa maneira, radical. Na versão que eu fizera para o Prólogo do Almanaque, o escritor Ariano Suassuna desaparecia, substituído por quatro Personagens. E então, tocado pelas palavras de João Batista Freire, fiquei pensando, de modo desatinado e até meio paranóico: "Será que, nela, meus leitores irão estranhar demais a nova forma de escrever? Será que vão sentir falta de minha pessoa e do tom de meus artigos anteriores?".
Então, na dúvida, voltei atrás em minha decisão. Reescrevi o Prólogo, mantendo o tom e o estilo que escolhera, mas continuando a fazer de mim mesmo seu Narrador principal. Assim, minha vida, minhas opiniões, minhas atitudes e minhas idéias perante o Mundo serão mais ou menos retratadas aqui, de forma fragmentária, neste Almanaque, que contém aforismos, conversas sobre as Artes em geral e a Literatura em particular; anedotas e versos de Cantadores; enredos em prosa e verso -conto, ensaio, memória, poesia e teatro; um inventário dos três reinos da Natureza, com seus respectivos emblemas, signos e insígnias; críticas e provérbios; discussões, polêmicas e informações que espero sejam proveitosas, por se tratar, nelas, de religião, filosofia e política; sortilégios e esconjuros; casos verídicos; receitas, previsões e profecias; horóscopos e proposições de enigmas; influências zodiacais, medicinas, charadas etc.
Como se vê, este Almanaque é uma espécie de Grande Logogrifo Brasileiro do Real e da Beleza. Talvez os críticos e leitores mais severos achem que seu tom, assim, o leva para uma certa falta de seriedade. Se tal acontecer, a culpa será minha, e não do Almanaque como gênero. Normalmente é grande a injustiça que se faz aos Almanaques, que, neste mundo falsamente "moderno" que vamos vivendo, constituem uma espécie de protesto. Em primeiro lugar, protesto contra o isolamento estéril em que as Artes e as Ciências vão se repartindo em especialidades cada vez mais separadas, cada uma delas egoisticamente encarando a si mesma como só e superior às outras. Depois, protesto contra o racionalismo descarnado e estéril dos cientificistas. É também uma indagação a respeito da ordem divina que nos condenou à meia-cegueira e ao meio-desterro, aqui no Mundo. Será que a fragmentação do nosso já precário conhecimento é resultado da sanção que veio castigar o crime inicial do Rebanho humano? Se foi isso que aconteceu, talvez seja por causa dele que se destroçou nossa visão primitiva, perfeita e total do Mundo. Antes, abarcávamos, de um só golpe, o presente, o passado e o futuro. Ou melhor: tudo acontecia num eterno presente, que assim se entregava à nossa clara e completa visão do Mundo.
Mas a falha que se introduziu em nós, ao que se diz por aquele misterioso crime cometido por nosso rebanho, desgarrou e dilacerou nossos olhos; e o Homem, novo Édipo, novo Prometeu, passou a se debater no escuro, devorado pelo Abutre que é o enigma do Mundo e da Vida. O Almanaque, contendo tudo aquilo que já enumerei, é uma tentativa de resumo e explicação, precária, mas totalizante, da Vida; uma rebelião pacífica e não-luciferina; uma luta contra o resto de enigma e escuridão que restou aqui, mesmo depois da vinda do Cristo, e que veio se juntar ao Mal e à Morte como salário do Crime comum. O Almanaque, como gênero, recusa-se àquelas friezas intelectuais, cerebralistas e isoladoras e é, no mundo contemporâneo, um dos últimos herdeiros do Humanismo; da posição daqueles que procuravam ser fiéis, ao mesmo tempo, ao conhecimento e à beleza; à filosofia e à poesia; à ciência e à arte; ao claro real e ao enigma sombrio; ao cotidiano e ao sonho; a tudo o que se entrega à reflexão consciente, mas também ao que nos inquieta nas escuras profundezas do inconsciente.
Fique então tudo aqui como um Almanaque. E se este, uma vez ou outra, chegar pelo menos perto do Lunário ou do Calendário Brasileiro do grande Gravador e Poeta-de-Cordel nordestino que é José Costa Leite, já me darei por satisfeito.


(Continua na próxima semana.)


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