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BERNARDO CARVALHO
O mais radioso dos dias
Sem a menor consciência ou
premeditação, pus na mala
"Os Anéis de Saturno" (1995), do
alemão W.G. Sebald, antes de embarcar numa viagem por terra
até o Acre, no final de junho. O livro estava na estante. Nunca tinha sido aberto. Era uma boa
oportunidade. Eu não fazia idéia
do que se tratava. E, mesmo depois de começar a lê-lo, continuei
sem ter muita certeza.
Só um mês depois, de volta a
São Paulo, me dei conta da estranha coincidência de ter escolhido
justamente aquele livro para ler
enquanto passava por campos de
algodão e de soja onde antes tinha sido cerrado, entre Goiás e
Mato Grosso, e ao longo de estradas margeadas por terra devastada e árvores calcinadas, entre
Rondônia e Acre, marca da conquista da civilização sobre a natureza.
Com apenas quatro livros publicados em vida, Sebald se tornou um dos escritores mais importantes do final do século 20.
Morreu em 2001, aos 57 anos,
num acidente de carro, na Inglaterra, onde vivia. "Os Anéis de Saturno" é um ensaio literário em
forma narrativa. Demorei para
entender que, mesmo passando
por assuntos tão distintos quanto
a infância de Joseph Conrad, a
pesca do arenque, os amores de
Chateaubriand, o bicho-da-seda
ou as últimas décadas do império
chinês, o tema era um só: a inconsciência da autodestruição
inexorável a que o ser humano está condenado. "A catástrofe nunca está tão próxima como quando
o futuro se anuncia como o mais
radioso dos dias." A frase ecoa a
lógica oculta sob a exaltação do
progresso.
Sebald menciona o Brasil em
pelo menos duas passagens. Na
primeira, para dizer que, "até os
dias de hoje, são regiões inteiras
às quais damos as costas depois
de tê-las explorado de maneira
selvagem, até o esgotamento, para nos lançarmos à conquista de
novas terras, mais a oeste". A floresta derrubada na beira da estrada, transformada em pasto
(sem nenhuma cabeça de gado à
vista) e pontuada por troncos negros de árvores queimadas, ilustra bem o trecho.
A segunda passagem é uma pequena digressão desencadeada
pela imagem aérea das "colossais
montanhas de fumaça aparentemente imóveis" das queimadas
na Amazônia: "Nossa propagação sobre a terra passa pela carbonização das espécies vegetais
superiores e, de uma maneira
mais geral, pela incessante combustão de todas as substâncias
combustíveis. (...) Tudo é combustão, e a combustão é o princípio
íntimo de todo objeto fabricado
por nós. (...) As máquinas concebidas por nós têm, como os nossos
corpos e a nossa nostalgia, um coração que se consome lentamente. Toda a civilização humana
nunca passou de um fenômeno de
ignição cada vez mais intenso e
que ninguém sabe até onde pode
crescer nem a partir de quando
começará a declinar".
Diante do impasse dessa inexorabilidade, da urgência da busca
de uma solução para a subsistência das populações locais e para a
sobrevivência de um país endividado como o Brasil no mercado
internacional, é terrível perceber
como até mesmo governos dos
quais participam notórios militantes ambientalistas se vêem, na
prática, constrangidos a defender
paliativos que, embora servindo
para afastar o escândalo e a selvageria da destruição imediata
(permitida e promovida por governos corruptos e truculentos,
como foi o caso num passado não
muito remoto do Acre), nem por
isso deixarão de provocá-la a longo prazo.
Hoje, no Acre, vitrine da Amazônia para o "desenvolvimento
sustentável" da floresta, com
apoio do Banco Mundial, o corte
seletivo da madeira (a que se dá o
nome de "manejo") passou a ser o
foco oficial da política ambientalista e de crescimento do governo
e das lideranças sindicais, todos
do PT, que vêem nele a única forma de subsistência viável e realista, a curto prazo, para os milhões
de pessoas que dependem da floresta. As vozes dissonantes de antigos aliados são ignoradas e afastadas por todo um aparato de
criação de consenso, do qual participam também ONGs e órgãos
de financiamento internacionais.
Contra as queimadas e o desmatamento ilegal (que, no passo
atual, segundo cálculos recém-divulgados, acabarão destruindo
60% da Amazônia em poucas décadas), parece não restar outra
opção senão atender às necessidades do mercado internacional e
legalizar o corte da madeira sob
uma nova racionalidade promovida por engenheiros florestais:
dentro de áreas controladas, assentamentos e reservas extrativistas, passa a ser permitida a derrubada de árvores de 400 anos, com
a condição de que se espere mais
30 anos para derrubar as próximas.
O projeto prevê o abate de apenas cinco a seis árvores por hectare, mas não é preciso nenhum gênio em cálculo projetivo para
concluir que, uma vez o corte da
madeira transformado na principal atividade extrativista dessas
áreas e contando ainda por cima
com a impunidade e ineficácia
dos meios de controle no país, estão apenas postergando o desaparecimento, agora legalizado, da
floresta. Uma estrada, ligando o
Acre ao Pacífico, deverá escoar essa produção para, entre outros, o
Japão, um dos maiores interessados na madeira amazônica.
É o que repete, sem se fazer ouvir, uma minoria de seringueiros
e ex-líderes sindicais, herdeiros de
atividades hoje obsoletas, como a
extração da borracha, que nadam contra a corrente e insistem
em pensar por conta própria e em
tentar priorizar outros produtos
da mata em vez da madeira, se
recusando a acatar a cartilha da
economia neoliberal e a ver no futuro "o mais radioso dos dias".
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