São Paulo, terça-feira, 17 de agosto de 2004

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BERNARDO CARVALHO

O mais radioso dos dias

Sem a menor consciência ou premeditação, pus na mala "Os Anéis de Saturno" (1995), do alemão W.G. Sebald, antes de embarcar numa viagem por terra até o Acre, no final de junho. O livro estava na estante. Nunca tinha sido aberto. Era uma boa oportunidade. Eu não fazia idéia do que se tratava. E, mesmo depois de começar a lê-lo, continuei sem ter muita certeza.
Só um mês depois, de volta a São Paulo, me dei conta da estranha coincidência de ter escolhido justamente aquele livro para ler enquanto passava por campos de algodão e de soja onde antes tinha sido cerrado, entre Goiás e Mato Grosso, e ao longo de estradas margeadas por terra devastada e árvores calcinadas, entre Rondônia e Acre, marca da conquista da civilização sobre a natureza.
Com apenas quatro livros publicados em vida, Sebald se tornou um dos escritores mais importantes do final do século 20. Morreu em 2001, aos 57 anos, num acidente de carro, na Inglaterra, onde vivia. "Os Anéis de Saturno" é um ensaio literário em forma narrativa. Demorei para entender que, mesmo passando por assuntos tão distintos quanto a infância de Joseph Conrad, a pesca do arenque, os amores de Chateaubriand, o bicho-da-seda ou as últimas décadas do império chinês, o tema era um só: a inconsciência da autodestruição inexorável a que o ser humano está condenado. "A catástrofe nunca está tão próxima como quando o futuro se anuncia como o mais radioso dos dias." A frase ecoa a lógica oculta sob a exaltação do progresso.
Sebald menciona o Brasil em pelo menos duas passagens. Na primeira, para dizer que, "até os dias de hoje, são regiões inteiras às quais damos as costas depois de tê-las explorado de maneira selvagem, até o esgotamento, para nos lançarmos à conquista de novas terras, mais a oeste". A floresta derrubada na beira da estrada, transformada em pasto (sem nenhuma cabeça de gado à vista) e pontuada por troncos negros de árvores queimadas, ilustra bem o trecho.
A segunda passagem é uma pequena digressão desencadeada pela imagem aérea das "colossais montanhas de fumaça aparentemente imóveis" das queimadas na Amazônia: "Nossa propagação sobre a terra passa pela carbonização das espécies vegetais superiores e, de uma maneira mais geral, pela incessante combustão de todas as substâncias combustíveis. (...) Tudo é combustão, e a combustão é o princípio íntimo de todo objeto fabricado por nós. (...) As máquinas concebidas por nós têm, como os nossos corpos e a nossa nostalgia, um coração que se consome lentamente. Toda a civilização humana nunca passou de um fenômeno de ignição cada vez mais intenso e que ninguém sabe até onde pode crescer nem a partir de quando começará a declinar".
Diante do impasse dessa inexorabilidade, da urgência da busca de uma solução para a subsistência das populações locais e para a sobrevivência de um país endividado como o Brasil no mercado internacional, é terrível perceber como até mesmo governos dos quais participam notórios militantes ambientalistas se vêem, na prática, constrangidos a defender paliativos que, embora servindo para afastar o escândalo e a selvageria da destruição imediata (permitida e promovida por governos corruptos e truculentos, como foi o caso num passado não muito remoto do Acre), nem por isso deixarão de provocá-la a longo prazo.
Hoje, no Acre, vitrine da Amazônia para o "desenvolvimento sustentável" da floresta, com apoio do Banco Mundial, o corte seletivo da madeira (a que se dá o nome de "manejo") passou a ser o foco oficial da política ambientalista e de crescimento do governo e das lideranças sindicais, todos do PT, que vêem nele a única forma de subsistência viável e realista, a curto prazo, para os milhões de pessoas que dependem da floresta. As vozes dissonantes de antigos aliados são ignoradas e afastadas por todo um aparato de criação de consenso, do qual participam também ONGs e órgãos de financiamento internacionais.
Contra as queimadas e o desmatamento ilegal (que, no passo atual, segundo cálculos recém-divulgados, acabarão destruindo 60% da Amazônia em poucas décadas), parece não restar outra opção senão atender às necessidades do mercado internacional e legalizar o corte da madeira sob uma nova racionalidade promovida por engenheiros florestais: dentro de áreas controladas, assentamentos e reservas extrativistas, passa a ser permitida a derrubada de árvores de 400 anos, com a condição de que se espere mais 30 anos para derrubar as próximas.
O projeto prevê o abate de apenas cinco a seis árvores por hectare, mas não é preciso nenhum gênio em cálculo projetivo para concluir que, uma vez o corte da madeira transformado na principal atividade extrativista dessas áreas e contando ainda por cima com a impunidade e ineficácia dos meios de controle no país, estão apenas postergando o desaparecimento, agora legalizado, da floresta. Uma estrada, ligando o Acre ao Pacífico, deverá escoar essa produção para, entre outros, o Japão, um dos maiores interessados na madeira amazônica.
É o que repete, sem se fazer ouvir, uma minoria de seringueiros e ex-líderes sindicais, herdeiros de atividades hoje obsoletas, como a extração da borracha, que nadam contra a corrente e insistem em pensar por conta própria e em tentar priorizar outros produtos da mata em vez da madeira, se recusando a acatar a cartilha da economia neoliberal e a ver no futuro "o mais radioso dos dias".


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