São Paulo, quinta-feira, 17 de agosto de 2006

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Bons companheiros

Michael Chaiken
Martin Scorsese segura o cartaz de "Deus e o Diabo na Terra do Sol"; Glauber Rocha posa diante do pôster de "Touro Indomável"


Em depoimento ao cineasta Joel Pizzini que a Folha publica com exclusividade, Martin Scorsese conta que os filmes de Glauber Rocha ainda o influenciam

Norte-americano, que finaliza seu mais recente filme, "The Departed", diz que costuma projetar obra do baiano para sua equipe


JOEL PIZZINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O cineasta Martin Scorsese, 64, nunca escondeu sua paixão pela arte de Glauber Rocha (1938-1981). Os dois estiveram juntos três vezes, em Nova York, Los Angeles e, por último, no Festival de Veneza, em 1980. A admiração era recíproca, como mostra uma foto feita pela artista Paula Gaitán, ex-mulher de Glauber, em Portugal, na qual ele posa diante do cartaz de "Touro Indomável" (1980). Em 1991, Scorsese deu provas de seu apreço ao adquirir os direitos para a recuperação e produção de cópias especiais em 35 mm da trilogia "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), "Terra em Transe" (1967) e "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969), que passou a integrar sua cinemateca particular. Quando foi convidado, em 1996, para editar o número 500 da revista francesa "Cahiers du Cinéma", Scorsese voltou a homenagear o amigo, dedicando-lhe um ensaio em que relaciona John Cassavetes, Ida Lupino e Glauber Rocha como as três personalidades fundamentais em sua formação. Agora trabalhando na mixagem de seu novo "The Departed" (lançamento previsto para este ano), Scorsese deu um depoimento sobre Glauber para o documentário "Milagres" (co-direção minha com Paloma Rocha), que integrará o DVD duplo de "Antonio das Mortes" -título internacional de "Dragão". Em 40 minutos de prosa animada, falou da influência que os filmes do baiano têm em seu trabalho. A seguir, os principais trechos da conversa.

 

INFLUÊNCIAS
Conheci Glauber quando comecei a fazer meus primeiros filmes. "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" teve grande impacto sobre "Caminhos Perigosos" (1973) e, especialmente, sobre "Touro Indomável". Neste, colocamos algumas músicas brasileiras em homenagem a ele. A última vez que o vi foi em Veneza, em 1980. Antes disso, tínhamos nos encontrado em minha outra casa em Los Angeles e jantamos juntos. Naquela ocasião, vimos "The Horse Soldiers", de John Ford. Ele gostava muito de Ford, gostava de faroeste. Disse-me que eu valorizava o cinema de um ponto de vista mais emocional do que político.

CHEGA O "DRAGÃO"
Assisti a "Terra em Transe" e "Os Fuzis" na versão original, sem legendas. Foi uma experiência muito forte. Era um tempo diferente. Todos os dias, uma nova obra-prima vinha da Itália, da França, do Japão, de todo lugar. E, de repente, "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" chega aos cinemas e varre todos os outros dali. Mas só posso dizer isso a partir de um ponto de vista emocional, porque não tinha, naquela época, o embasamento intelectual e um entendimento de natureza política do que estava acontecendo no Brasil.

FILME PREDILETO
Meu filme predileto do Glauber é "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" [filmado em 1969]. É o filme que vivo revendo e continuo mostrando às pessoas -quando acho que elas merecem [risos]. Às vezes, elas não merecem, pois certas pessoas são como zumbis, não têm sentimentos ou coisa parecida. Acho que é bom mostrá-lo para as pessoas quando acredito que possa ajudá-las em seu trabalho. Mesmo até se elas rejeitarem o filme. Afinal, isso também é um tipo de reação. Fico indo e voltando ao "Dragão", e a música não sai da minha cabeça. Eu o conheço de ponta a ponta.

MITOLOGIA PRIMITIVA
O "Dragão" fez a política parecer irrelevante porque lidava com a verdade e a paixão. O filme tratava daqueles que tinham e dos que não tinham. Parecia uma coisa vinda dos tempos primitivos do Mal, quando as pessoas pareciam poder possuir a Terra. Era como se víssemos uma mitologia primitiva que havia sido criada ali na tela.

MÚSICA NARRATIVA
O "Dragão" tem elementos de faroeste, obviamente no que diz respeito ao personagem do cangaceiro, o típico bandido brasileiro, que pode ser comparado ao bandido americano. Mas o que me chama a atenção é a força narrativa da música. Fiquei tão obcecado com a música que consegui cópias da trilha e colocava em meu toca-fitas quando vivi em Los Angeles -de 1972 a 1983. Tocava aquela fita no meu carro o tempo todo. Glauber utilizou a música da mesma forma que Bob Dylan compunha canções como "Masters of War". Aquela balada-tema do personagem "Antonio das Mortes", que é "like a rolling stone!".

CINEMA NOVO
O filme responde à verdade das ruas. Mostra que aqueles que não têm nada terão voz. É isso que o cinema novo expressava naquela época. O mundo caminhava naquela direção. E acho que vai retomar esse caminho agora. O "Dragão" deixou isso mais claro. Existem os que têm e os que não têm. Você poderia dar ou você poderia tomar, ou você poderia partilhar [risos]. Aqueles que não o fizerem terão de enfrentar os outros que surgirão da terra, de onde estiverem, do "cerrado" (assim é que se diz no Brasil?).

GANGUES
A ária da mulher com a faca é extraordinária, com aqueles rituais. Há um instante em que uma anciã começa a cantar. Acho que é quando Antônio das Mortes luta pela primeira vez com outro cangaceiro, com um lenço entre eles. Um deles morde uma ponta do lenço e o outro morde a outra ponta, tudo num plano-seqüência. Eu o projetei recentemente, umas duas vezes: uma para o elenco de "Gangues de Nova York" (2002) e outra para o filme de gângsteres que estou finalizando agora, chamado "The Departed".

NOVO CINEMA
Hoje, existem inúmeros modos de narrar. Acontece de novo uma revolução, mas não tenho certeza se o resultado dela ainda poderá ser considerado cinema, ainda que grandes filmes de Hollywood, europeus, asiáticos ou sul-americanos estejam sendo exibidos em iPods. Não sei se um filme foi feito para ser visto naquele tamanho de tela. Ela é tão pequena que a obra vira uma outra coisa. O que estamos vendo é algo que está sendo reinventado agora. O caminho está aberto novamente. Temos que nos manter chocados e precisamos alertar os jovens talentos, dizendo a eles: "Não se deixem levar por isso". Não somente pelo "cinemão", mas também pelo filme sentimental independente. Nada contra, eles são bons, mas ainda dá para ir mais fundo. É por isso que é bom que existam filmes como os de Glauber e os do cinema novo. Eles podem ser referência para estes novos tempos.
JOEL PIZZINI é diretor de "Dormente" e "500 Almas" e co-diretor de projeto de restauração da obra de Glauber Rocha


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