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Crítica/"Terras Baixas"
Vidas de personagens à margem são o foco do livro
MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA
É tradição de determinada corrente crítica
apontar que, em certos
romances, como "David Copperfield" e "O Grande Gatsby",
embora narrados em primeira
pessoa, o que importa não é
exatamente o narrador, mas o
destino dos que o rodeiam.
É o que ocorre com "Terras
Baixas", do irlandês Joseph
O'Neill. A história do narrador
Hans van den Broek, com sua
crise conjugal, soa-nos bastante insípida. O interesse do livro
reside na perspectiva de Hans
sobre fatos, lugares e pessoas
que marcaram sua estada em
Nova York -nos anos que antecederam e, sobretudo, sucederam os atentados de 11 de setembro de 2001.
Apesar da atividade de Hans
como analista financeiro e sua
condição de homem branco,
sua paixão por críquete (esporte considerado de imigrantes
nos EUA) o faz travar amizade
com um contingente multicultural de indianos, paquistaneses, guianenses e antilhanos.
Dentro desse grupo visto
com desconfiança e ressentimento por muitos americanos,
destaca-se a figura de Chuck
Ramkissoon, um simpático e
elusivo trinitário de origem indiana. Chuck no fim acabaria
assassinado, logo nos conta o
narrador, e seu corpo resgatado
das águas do Gowanus Canal.
Enquanto sonha em construir um gigantesco clube de
críquete em NY, Chuck dirige
negócios mais obscuros, potencialmente arriscados. Sua fúria
empreendedora espelha o ímpeto quase insano de outros
imigrantes, como o turco Mehmet, que gosta de vestir-se de
anjo. E contrasta com a apatia,
a incomunicabilidade e o "desânimo infinito" que assola a
classe média americana e europeia, grupo a quem Hans também está ligado. O título original, "Netherlands" -literalmente, "Países Baixos"- representa mais que uma referência
à origem holandesa do protagonista. "Nether" significa "baixo" no sentido daquilo que ocupa uma posição também subterrânea ou "infernal", na acepção grega das regiões ínferas
para onde se dirigiriam as almas dos mortos.
Assim, o romance transita,
em seus melhores momentos,
entre a imagem das "pequenas
silhuetas acenando que foram
visíveis por algum tempo e depois não mais" e as forças tectônicas, infernais, daqueles a
quem, talvez por ainda serem
capazes de sonhar, o contrato
social reserva asas de mentira
ou o fundo lodoso de um canal.
TERRAS BAIXAS
Autor: Joseph O'Neill
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 38 (270 páginas)
Avaliação: bom
MARCELO PEN é professor de teoria literária na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
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