São Paulo, segunda-feira, 17 de agosto de 2009

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Crítica/"Terras Baixas"

Vidas de personagens à margem são o foco do livro

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

É tradição de determinada corrente crítica apontar que, em certos romances, como "David Copperfield" e "O Grande Gatsby", embora narrados em primeira pessoa, o que importa não é exatamente o narrador, mas o destino dos que o rodeiam.
É o que ocorre com "Terras Baixas", do irlandês Joseph O'Neill. A história do narrador Hans van den Broek, com sua crise conjugal, soa-nos bastante insípida. O interesse do livro reside na perspectiva de Hans sobre fatos, lugares e pessoas que marcaram sua estada em Nova York -nos anos que antecederam e, sobretudo, sucederam os atentados de 11 de setembro de 2001.
Apesar da atividade de Hans como analista financeiro e sua condição de homem branco, sua paixão por críquete (esporte considerado de imigrantes nos EUA) o faz travar amizade com um contingente multicultural de indianos, paquistaneses, guianenses e antilhanos.
Dentro desse grupo visto com desconfiança e ressentimento por muitos americanos, destaca-se a figura de Chuck Ramkissoon, um simpático e elusivo trinitário de origem indiana. Chuck no fim acabaria assassinado, logo nos conta o narrador, e seu corpo resgatado das águas do Gowanus Canal.
Enquanto sonha em construir um gigantesco clube de críquete em NY, Chuck dirige negócios mais obscuros, potencialmente arriscados. Sua fúria empreendedora espelha o ímpeto quase insano de outros imigrantes, como o turco Mehmet, que gosta de vestir-se de anjo. E contrasta com a apatia, a incomunicabilidade e o "desânimo infinito" que assola a classe média americana e europeia, grupo a quem Hans também está ligado. O título original, "Netherlands" -literalmente, "Países Baixos"- representa mais que uma referência à origem holandesa do protagonista. "Nether" significa "baixo" no sentido daquilo que ocupa uma posição também subterrânea ou "infernal", na acepção grega das regiões ínferas para onde se dirigiriam as almas dos mortos.
Assim, o romance transita, em seus melhores momentos, entre a imagem das "pequenas silhuetas acenando que foram visíveis por algum tempo e depois não mais" e as forças tectônicas, infernais, daqueles a quem, talvez por ainda serem capazes de sonhar, o contrato social reserva asas de mentira ou o fundo lodoso de um canal.


TERRAS BAIXAS
Autor: Joseph O'Neill
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 38 (270 páginas)
Avaliação: bom

MARCELO PEN é professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.


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