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"Os Matadores" é um clássico; experimente ver
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Não sou contra o sistema de
"estrelinhas" ou de cotações
(ruim/regular/bom etc.) que
acompanha os roteiros de cinema nos jornais. Mas, como todo leitor, às vezes fico inconformado com a opinião dos
críticos. Estão dando só duas
estrelas para "Os Matadores", filme de Beto Brant em
cartaz no Espaço Unibanco.
Achei "Os Matadores" um
filme sensacional. Raras vezes,
no cinema brasileiro ou em
qualquer outro, podemos ver
uma história tão bem construída, um desfecho tão lógico e
surpreendente ao mesmo tempo. Aquilo não é um filme, é
uma bomba-relógio.
Segue-se com brilho o ensinamento do escritor argentino
Ricardo Piglia, que, em "A
Oficina do Escritor" (ed. Iluminuras), fez esta descoberta
interessantíssima: a de que todo conto bem-sucedido está,
na verdade, contando duas
histórias. Uma, aparente, linear, e outra, oculta, que só se
revela no final.
A primeira história de "Os
Matadores" apresenta as
aventuras de Múcio, um pistoleiro paraguaio que faz serviços para um fazendeiro no
Brasil. Os seus assassinatos são
contados em "flashback" pelo
comparsa mais velho. A segunda história diz respeito ao rapaz que ouve essas lembranças. O resultado é de uma elegância estética e de uma profundidade moral que andam
muito raras no cinema hoje em
dia.
Vemos a violência do campo
brasileiro com todo seu absurdo e arbitrariedade. Mas, ao
mesmo tempo, a narração é lógica, geométrica, exige raciocínio do espectador; apela para
a frieza, não tanto para a indignação. Esse contraste é raro
em muitas obras de arte modernas.
Explico um pouco. Muitas
vezes, o modernismo (em cinema, teatro, literatura etc.) tende a "mimetizar", a imitar, a
caricaturar aquilo que denuncia. Assim, se a vida moderna é
caótica, trata-se de fazer também uma obra "caótica"; se a
violência nas relações de trabalho no campo é a regra, façamos um filme que, denunciando essa violência, seja ele
próprio violento, arbitrário.
A mímese, aqui, funciona como uma identificação com o
agressor. Quantos poemas não
imitam as técnicas da publicidade? Quantos críticos não explicam o modernismo pelo que
tem de obediente aos "ritmos" da cidade grande? O culto da velocidade, da técnica,
do imediato, do irrefletido, é
ao mesmo tempo "moderno"
e "modernista".
É como se a ironia moderna
servisse de álibi para piorar, de
propósito, o que já anda mal
das pernas. Contra essa visão
fácil da ironia, boa para os críticos e intérpretes, é possível
dar exemplos de uma arte que
se leva a sério, sem mímese
"macaqueante" face ao
opressor, sutil o bastante para
não apontar a própria ironia
com gestos de circo.
"Os Matadores" pertence a
essa categoria superior de arte,
de um modo que mesmo Hitchcock, se descuidarmos um pouco do formalismo, é incapaz de
ser, e de um modo que "Pulp
Fiction", de Quentin Tarantino, apesar do extremo engenho
de enredo e de seu humorismo,
não aspira a ser. "Os Matadores" é antiparódico, é sério e
moderno ao mesmo tempo.
Meu objetivo, entretanto,
não era falar de "Os Matadores", coisa que só seria possível se eu contasse a história do
filme, e sim da voga de filmes
nordestinos atualmente em
cartaz.
Temos "Baile Perfumado",
de Paulo Caldas e Lírio Ferreira; "Crede Mi", de Bia Lessa;
vem aí "Canudos", de Sérgio
Rezende; e já passou "O Sertão das Memórias", de José
Araújo.
A que se deve essa voga de filmes sobre o sertão? A meu ver,
recupera-se aqui a memória do
cinema nacional, depois de um
período de estagnação. Não é à
toa que o sertão de "Baile Perfumado" aparece verdejante,
nada decadente, na tela do
Unibanco. Celebra-se uma renascença.
Por muito tempo, o Nordeste
foi a região-problema do país.
Ainda é. Mas deixou, de certa
maneira, de ser o foco dos conflitos sociais (veja-se o Pontal
do Paranapanema), para
transformar-se numa espécie
de reserva do imaginário arcaico frente às ameaças de modernização.
O tema da modernização,
mais do que a denúncia, é o
que mobiliza os filmes citados
acima. Em "Baile Perfumado", vemos o conflito entre um
cineasta aventureiro, uma espécie de paparazzo, chamado
Benjamin Abraão, e as forças
do Estado Novo.
Esse Benjamin Abraão, personagem real, foi o primeiro a
registrar imagens de Lampião
e de seu bando, nos idos de 30.
Envolveu-se numa verdadeira
guerra para conseguir o que
queria.
Narram-se, no filme, as dificuldades clássicas do cinema
nacional em conseguir financiamento, faz-se uma pré-história da censura e, o que é
mais importante, registram-se
as consequências da modernidade sobre o sertão. Lampião
só quer saber de uísque importado e perfume francês. Benjamin Abraão, querendo filmar
o cangaceiro, é símbolo do encontro entre o moderno e o arcaico. Seu filme glorifica Lampião; mas o cineasta, em sua
busca, dá pistas para que o governo termine encontrando o
esconderijo do bandido, trucidando-o.
"Baile Perfumado" narra
esse encontro ambíguo entre
modernidade e banditismo, as
ambiguidades entre a glorificação e a crítica "modernas"
do arcaico e do anticapitalista.
Mas a cena final, delirante, de
um Lampião redivivo e imponente, vigoroso nos altos de um
despenhadeiro, como um videoclipe, denuncia uma certa
ingenuidade dos diretores.
É como se dissessem: "a modernidade venceu, mas o mito
é mais forte". Lampião, vencedor, o cineasta Abraão, derrotado: não há nisso uma apologia modernista do nordeste
antimoderno?
"Canudos", de Sérgio Rezende, é outra história. Escolheu-se o grande épico da
"modernização" republicana. Claro que, hoje, não pensamos como os intelectuais
"avançados" de 1890. Sabemos, como Euclides da Cunha
já sabia, que aquilo foi um crime, um massacre, não um episódio modernizante. Essa é,
naturalmente, a perspectiva de
Sérgio Rezende.
Mas o problema é que ele
quis fazer um filme "moderno". Formalmente, "Canudos" está do lado das tropas
que massacram os fanáticos de
Conselheiro. Por mais que o
filme mostre a intolerância fanática do governo republicano
e positivista, não se consegue
assumir o ponto de vista dos
massacrados. A figura de Conselheiro, vivida por José Wilker, sofre então de uma artificialidade, de uma incompreensibilidade, de um ridículo total.
O filme hesita entre a obrigação de ser mercadologicamente bom, "moderno", e a necessidade de assumir o ponto
de vista dos massacrados "arcaicos", sertanejos, pobres.
Concentra-se, então, no drama
de uma personagem feminina,
vivida por Cláudia Abreu, cuja
família adere a Conselheiro e
cujo marido adere às tropas republicanas.
É como se transpusesse para
o enredo a ambiguidade de seu
ponto de vista ideológico. Mas
essa ambiguidade se dissolve
na forma: o filme, "modernamente", vira uma novela da
Globo, com conflitos de amor e
um lindo rostinho em lágrimas.
Mais do que isso, transforma-se numa superprodução à
brasileira, com cidade cenográfica e réplica perfeita da
igreja construída por Conselheiro. A réplica é destruída
com dinamite numa bela cena:
é como se, para fazer um bom
filme, fosse preciso destruir Canudos mais uma vez.
A modernidade triunfa, então, ainda que o sentido proposto seja o de uma crítica a
seus "excessos".
As relações entre modernidade e sertão são mais complexas, mais ambíguas, e eu diria
mais malandras, no filme de
Bia Lessa, "Crede Mi". Aqui,
a precariedade da filmagem é
assumida de propósito. Há
uma solidariedade na ruindade, por assim dizer. Bia Lessa
gravou em vídeo os ensaios de
uma peça baseada em Thomas
Mann, com atores sertanejos.
Tudo é muito ruim e muito
"mudéhno": os atores são
ruins, mas viva os atores, já
que o texto de Thomas Mann
exige, ironicamente, uma ingenuidade tosca, à qual os movimentos oblíquos de câmera
darão contraponto, garantindo uma ironia, um senso crítico, só que não sabemos contra
quem. Moderniza-se a história, mas essa modernização é
vaga, sem objeto, abstrata.
"O Sertão das Memórias"
faz o contrário: arcaíza Glauber Rocha, num filme muito
chato, ingênuo, que contrapõe
o dragão da maldade contra a
social-democracia, e projeta
esse conflito não para o futuro,
mas para um passado irreal.
De toda essa safra de filmes
nordestinos, o resultado é fraco, ou, pelo menos, irresolúvel,
na minha opinião. Mas não se
esqueça de ver "Os Matadores": modernidade, regionalismo, universalidade e arcaísmo encontram ali um ponto de
convergência crítico e perfeito.
Não é um filme brasileiro; é
um filme clássico, é um clássico
do cinema; qualquer esquimó,
qualquer americano, e mesmo
Shakespeare entenderiam do
que se trata. "Os Matadores"
é um filme universal, concretíssimo e grandioso. Desculpem-me pelo excesso. Mas é isso o que eu acho.
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