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São Paulo, quarta-feira, 17 de setembro de 2003

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ANÁLISE

Noticiários invadem a teledramaturgia

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Referências documentais a elementos da vida contemporânea em larga medida estruturam a verossimilhança das novelas de televisão.
Nos últimos anos essa vocação para comentar elementos polêmicos da conjuntura se radicalizou em títulos que podem ser considerados de "intervenção".
A atual novela das oito, "Mulheres Apaixonadas" (Globo), ameaçou expandir essa espécie pós-moderna de merchandising para o âmbito da política, o que é preocupante.
A partir de meados dos anos 90, novelas de autores diferentes como Glória Perez e Benedito Ruy Barbosa realizaram um misto de ação afirmativa e prestação de serviço.
A novela "Explode Coração" (Globo, 1995), de Glória Perez, divulgou imagens de crianças desaparecidas, contribuindo para reunir famílias fragmentadas. "O Rei do Gado" (Globo, 1996), de Barbosa, revelou para o grande público a existência do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra), ajudando a aumentar seu peso político.
"O Clone" (Globo, 2001), também de Perez, contava com depoimentos de ex-viciados sobre sua experiência com as drogas.
Merece menção o diálogo "sui generis", comentado na época nessa coluna, entre o então senador Darcy Ribeiro e o personagem de Carlos Vereza em "O Rei do Gado".
Na mesma novela o também senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e a ministra Benedita da Silva atenderam a um convite da produção para comparecer ao velório do senador da ficção.

Figurantes célebres
"Mulheres Apaixonadas" promoveu e registrou a manifestação pelo desarmamento no último domingo no Rio de Janeiro -com direito a figuração de luxo.
Entre os participantes da passeata estavam os ministros da Justiça e das Comunicações, além do presidente da Câmara dos Deputados e de diversos membros do governo.
Declarações desses figurantes célebres foram exibidas no noticiário de domingo, mas estiveram ausentes do anunciado capítulo de segunda.
Apesar do alarde, a cobertura da passeata na novela acabou reduzida a um clipe final, ao som do Hino Nacional, com imagens de diversas "alas": do colégio da ficção aos policiais da notícia, que se colocaram também como vítimas da violência.
As incursões da dramaturgia pelo terreno do noticiário em geral repercutem. O "Jornal Nacional" e o "Fantástico" divulgam desenlaces de tramas secundárias geradas por novelas na vida privada de cidadãos não-personagens. Jornais diários noticiam.
As "causas" são nobres e elevam os índices de audiência. Mas correm o risco de esvaziar a dramaturgia e às vezes, em vez de contribuir para o esclarecimento, despolitizam.
Uma ação de marketing como a que se delineou chamaria a atenção para a interação folclórica entre personagens e políticos, ao invés de denunciar as pressões da indústria de armas contra a aprovação do Estatuto do Desarmamento, assunto que não merece um segundo plano.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP

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